Continuação de "Sangria"
Você acordou com tanta vontade de chorar. Você
esfrega os olhos e enquanto a visão desembaça alguém se senta ao seu lado. Você
pensa que quando chegar em casa vai ver um filme. É uma mulher. Um daqueles bem
tristes, para chorar bastante. Ela tem a pele levemente negra, os cabelos tem
cachos bem miudinhos e estão presos no topo da cabeça por uma faixa. E você vai
chorar até soluçar, e vai dizer que foi por causa da história triste. Ela te
olha e sorri, os dentes contrastam com a pele negra e parecem muito brancos.
Mas na verdade você não vai nem lembrar do nome do casal, só vai lembrar do porquê
chorou.
"Eu estava te esperando, agora eu vou lhe ensinar a mentir."
Ela veste tons de marrom, um casaco pesado e uma
bolsa de plástico. O ônibus para no tubo, você vê um sujeito saindo de uma
banca de jornal com uma das mãos atrás das costas, o sujeito contorna o arco do
jardim da praça e senta-se no banco ao lado de uma garota, você vê os dois
aproximando-se para falar, trocam algumas palavras que você não pode ouvir, e
detrás das costas o sujeito tira uma rosa. A mulher sorri para você.
"Vai me ensinar o que?"
O ônibus passa por um arco de árvores, a canaleta
é pintada de sombra pelos raios que atravessam as folhas, o asfalto está
camuflado de luz. Ela abre a bolsa e revira um emaranhado de sacolas de
supermercado, de lá ela tira um lenço florido.
"Primeiro limpa esse pescoço."
Sobre você os prédios formam um arco de concreto.
Você não consegue ver o céu. Eles sobem e roubam a luz em fachadas de vidro e
revestimentos pastilhado. A homogeneidade do progresso humano é lindo. Você
passa o lenço no pescoço e mancha o algodão com um rastro vermelho. Passa uma,
duas, três vezes, e é cada vez mais vermelho. Em uma esquina há um edifício português.
A fachada tem azulejos brancos coloridos de azul, as janelas detalhes
mouriscos, há floreiras esparramando ramalhetes com botões cor de rosa das
venezianas.
"Agora sim. Me dá esse lenço. Agora me escuta."
Há música tocando no ônibus. Afogados pelos
soluços da suspensão hidráulica trompetes e acordeões buzinam para ninguém
ouvir. Cada marcha torna o ônibus mais veloz e a música mais distante. Todos
ouvem a sinfonia mecânica e não escutam nada.
"Você é feito das coisas que ama. Você ama as coisas que vê."
Algumas poltronas à frente você vê aqueles
cabelos familiares. Ela está de costas para você e ainda não te viu. Você sabe
que ela vai lhe receber com um sorriso. Vai perguntar como foi seu dia e vai
lhe dar um beijo. Você vai contar que esta triste e ela dirá que te ama. Você
vão dar as mão e vão andar, discutir se é art-déco ou art-nouveau, vão discutir
literatura beat e no fim vão concordar que o filho de vocês se chamará
Arthur.
"E as coisas que você ama são as coisas que lhe fazem feliz. As coisas que você ama são as coisas que lhe fazem."
Há um cabelo enrolado na sua roupa. A mulher o
apanha com os dedos longilíneos, o estica, aponta para a poltrona da frente e
sorri.
"Calma, você já vai para ela."
Ela apanha um pacote de dentro da bolsa. O pacote
está cheio de argila úmida. Ela apanha um punhado, aperta-o nas mãos e forma um
pequeno disco. Com a ponta da unha ela desenha um padrão de arcos e linhas que
se cruzam.
"Agora abra as mãos."
O padrão parece um intrincado desenho celta. Mas
há algo selvagem, algo caótico e desordenado. Não é simétrico, as linhas tem
espessuras diferentes. Mas ainda assim é tudo muito geométrico e o desenho é
harmônico.
"Aqui."
Ela aponta para a própria garganta.
"Fecha, guarda, esconde tudo o que tem para esconder."
Você amassa a argila nas mãos. Com a garganta
embotada de cimento e terra você empurra a argila cada vez mais para o fundo.
Soca com os dedos, amassa e alisa até formar uma cobertura no buraco.
"E quando for falar lembre-se das coisas que ama. Lembre-se de como elas te fazem sorrir, lembre-se de como a felicidade lhe dá vontade de chorar."
Do mesmo saco ela tira um punhado de areia.
"Quando falar escolha, as palavras
sorrindo. Ainda que você seja ódio, sorria. Acompanhe o ritmo das almas dois
outros. Pois você é diferente, você vê a beleza e o significado em todas as
coisas. Para você as pessoas são pouco, não lhe oferecem desafio ou
aprendizado. Mas sorria. Entre em sinergia com a alma e esqueça de tudo. Apenas
lembre-se do que lhe faz feliz e deixe-se ir. Aprenda a sorrir para poder
falar."
Dos dedos compridos a areia escorre para seu
pescoço. A areia consolida-se na argila úmida em seu pescoço. O sangue molha a
terra e torna a massa pastosa. Conforme a areia é derramada o sangue é
estancado. A ferida se cura. E o barro lhe dá vida.
"Agora diga."
Você fica quieto. Apenas sorri. Levanta-se e vai
em direção à frente do ônibus. Chega sorrindo e dá um beijo no rosto da garota
que lhe esperava.
"Amorzinho! Eu não te vi chegar. Nem sabia que você estava neste ônibus. Você está bem, meu ursinho?"
Ela tinha as mãos sujas de terra.
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