Páginas

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Aglomerante

Continuação de "Sangria"


Você acordou com tanta vontade de chorar. Você esfrega os olhos e enquanto a visão desembaça alguém se senta ao seu lado. Você pensa que quando chegar em casa vai ver um filme. É uma mulher. Um daqueles bem tristes, para chorar bastante. Ela tem a pele levemente negra, os cabelos tem cachos bem miudinhos e estão presos no topo da cabeça por uma faixa. E você vai chorar até soluçar, e vai dizer que foi por causa da história triste. Ela te olha e sorri, os dentes contrastam com a pele negra e parecem muito brancos. Mas na verdade você não vai nem lembrar do nome do casal, só vai lembrar do porquê chorou. 

"Eu estava te esperando, agora eu vou lhe ensinar a mentir."

Ela veste tons de marrom, um casaco pesado e uma bolsa de plástico. O ônibus para no tubo, você vê um sujeito saindo de uma banca de jornal com uma das mãos atrás das costas, o sujeito contorna o arco do jardim da praça e senta-se no banco ao lado de uma garota, você vê os dois aproximando-se para falar, trocam algumas palavras que você não pode ouvir, e detrás das costas o sujeito tira uma rosa. A mulher sorri para você.

"Vai me ensinar o que?"

O ônibus passa por um arco de árvores, a canaleta é pintada de sombra pelos raios que atravessam as folhas, o asfalto está camuflado de luz. Ela abre a bolsa e revira um emaranhado de sacolas de supermercado, de lá ela tira um lenço florido.

"Primeiro limpa esse pescoço."

Sobre você os prédios formam um arco de concreto. Você não consegue ver o céu. Eles sobem e roubam a luz em fachadas de vidro e revestimentos pastilhado. A homogeneidade do progresso humano é lindo. Você passa o lenço no pescoço e mancha o algodão com um rastro vermelho. Passa uma, duas, três vezes, e é cada vez mais vermelho. Em uma esquina há um edifício português. A fachada tem azulejos brancos coloridos de azul, as janelas detalhes mouriscos, há floreiras esparramando ramalhetes com botões cor de rosa das venezianas.

"Agora sim. Me dá esse lenço. Agora me escuta."

Há música tocando no ônibus. Afogados pelos soluços da suspensão hidráulica trompetes e acordeões buzinam para ninguém ouvir. Cada marcha torna o ônibus mais veloz e a música mais distante. Todos ouvem a sinfonia mecânica e não escutam nada.

"Você é feito das coisas que ama. Você ama as coisas que vê."

Algumas poltronas à frente você vê aqueles cabelos familiares. Ela está de costas para você e ainda não te viu. Você sabe que ela vai lhe receber com um sorriso. Vai perguntar como foi seu dia e vai lhe dar um beijo. Você vai contar que esta triste e ela dirá que te ama. Você vão dar as mão e vão andar, discutir se é art-déco ou art-nouveau, vão discutir literatura beat e no fim vão concordar que o filho de vocês se chamará Arthur. 

"E as coisas que você ama são as coisas que lhe fazem feliz. As coisas que você ama são as coisas que lhe fazem."

Há um cabelo enrolado na sua roupa. A mulher o apanha com os dedos longilíneos, o estica, aponta para a poltrona da frente e sorri.

"Calma, você já vai para ela."

Ela apanha um pacote de dentro da bolsa. O pacote está cheio de argila úmida. Ela apanha um punhado, aperta-o nas mãos e forma um pequeno disco. Com a ponta da unha ela desenha um padrão de arcos e linhas que se cruzam. 

"Agora abra as mãos."

O padrão parece um intrincado desenho celta. Mas há algo selvagem, algo caótico e desordenado. Não é simétrico, as linhas tem espessuras diferentes. Mas ainda assim é tudo muito geométrico e o desenho é harmônico.

"Aqui."

Ela aponta para a própria garganta.

"Fecha, guarda, esconde tudo o que tem para esconder."

Você amassa a argila nas mãos. Com a garganta embotada de cimento e terra você empurra a argila cada vez mais para o fundo. Soca com os dedos, amassa e alisa até formar uma cobertura no buraco.

"E quando for falar lembre-se das coisas que ama. Lembre-se de como elas te fazem sorrir, lembre-se de como a felicidade lhe dá vontade de chorar."

Do mesmo saco ela tira um punhado de areia.

"Quando falar escolha, as palavras sorrindo. Ainda que você seja ódio, sorria. Acompanhe o ritmo das almas dois outros. Pois você é diferente, você vê a beleza e o significado em todas as coisas. Para você as pessoas são pouco, não lhe oferecem desafio ou aprendizado. Mas sorria. Entre em sinergia com a alma e esqueça de tudo. Apenas lembre-se do que lhe faz feliz e deixe-se ir. Aprenda a sorrir para poder falar."

Dos dedos compridos a areia escorre para seu pescoço. A areia consolida-se na argila úmida em seu pescoço. O sangue molha a terra e torna a massa pastosa. Conforme a areia é derramada o sangue é estancado. A ferida se cura. E o barro lhe dá vida. 

"Agora diga."

Você fica quieto. Apenas sorri. Levanta-se e vai em direção à frente do ônibus. Chega sorrindo e dá um beijo no rosto da garota que lhe esperava.

"Amorzinho! Eu não te vi chegar. Nem sabia que você estava neste ônibus. Você está bem, meu ursinho?"

Ela tinha as mãos sujas de terra.