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terça-feira, 16 de abril de 2013

Sangria.




            A navalha lhe seduz com o brilho prateado. As finíssimas linhas das dobras encruadas do aço criam um padrão difuso da luz em sua superfície.
Stainless Steel. Aço Inox.  
Uma porra de uma navalha que pode cortar o seu pescoço. Ela corre pelo creme deixando um rastro de pele limpa.
Repuxa aqui, pega de viés. Vai e volta. Primeiro à favor do pelo, depois contra. E agora você parece um lindo sujeito 
com uma linda cara 
como uma linda bunda de bebê.

Você tem pinta de médico, ou de advogado talvez.
Médico Nazista e Advogado do Diabo, talvez.

Você encara seus olhos pretos. Encara o rosto quadrado. Sorri para si mesmo. Sorri para o espelho.
Você é um Exu.
Sorri para quem? Sorri para si mesmo esperando que os outros sorriam de volta. 
Os outros.
Você é um anjo.
Não deixe a navalha cair, qualquer batida estraga o alinhamento do fio. Você vê um pelo sozinho. Um singelo pelo perdido na seda do seu rosto. Sem creme, sem água você apara o pelo. O som áspero da navalha vem com um filete de sangue.
Você é o rei. 
Lave seu rosto com água fria, ela fecha os poros. E cada borrifada de água vem com mais sangue. Como a anunciação das cornetas do apocalipse ela vem devagarinho. Começa com o vermelho se difundindo nas gotas de água sobre o corte. Até que todas elas estão completamente vermelhas. Crescendo elas se juntam. Juntando-se elas caem. E no fim orquestram uma sangria que corra pela sua pele tão lisa.
Você é o senhor sem deus.

Apanhe papel. Estanque o corte. Um bandaid e um merthiolate. Mas não vai parar.
Lembra-se de quando o merthiolate doía? Hoje não dói mais. Você não sabe se você quem se tornou mais duro, ou se o merthiolate parou de doer.
As coisas têm sido assim, elas têm parado de doer. Você se tournou duro. E a linda bunda de bebê na verdade é tão espessa quanto a carapaça de um besouro.

Não vai parar.

Os papéis se acumulam. Vemelho, vermelinho, vermelhão, seu sangue se espalha pelho chão. Cada vez mais sangue e cada vez menos dor. Suas mãos encharcadas vão delineando as digitais pelos azulejos brancos. E feito você elas são uma sujeira distoante na imensidão branca. 

Não vai parar. 

Apanhe uma toalha e veja as fibras se colorindo. Veja o sangue espalhando-se e formando fractais que fecham-se em um pano de fundo vermelho. Pano que pinga. Pano que espalha. E você se espalha pelas paredes. Escorre e forma poças. Você mancha, suja e macula a limpeza asséptica das paredes. Você é uma granda macha que incomoda a homogeneidade de todos.

Não vai parar. 

Você apanha a navalha. Você sabe que a única coisa que vai fazer a sangiria parar é mais sangue. É mais ódio. Então dilacere. Encoste a navalha na garganta e puxe. Encoste mais uma vez e serre. Afunde a lâmina no buraco, gire, dilacere e destrua. Sinta as veias rompendo-se e a carne gelatinosa virando uma massa disforme. Espicace a pele. Sinta a lâmina bater nos ossos. Sinta o aço arranhando e prendendo nas arestas duras das vértebras. Puxe-a até as orelhas. E aí então seja agressivo. Feche todos os dedos em volta da lâmina e apunhale, até que seu pescoço esteja transformado em gelatina. Até que seus dedos estejam pendendo carcomidos até os ossos. E respire. Respire fundo. Ouça o ronco rouco do ar entrando. Ouça o barulho gorgolejante da sua respiração. Assopre bolhas. Aproxime-se do espelho. Sorria. E veja a sua respiração espirrando gotículas no espelho. 


Sorria. 
Pois sorrir tem poder. Mostre os dentes. Jogue a cabeça para trás e sorria com a garganta. Sorria.
Pois você cortou o pescoço para a sociedade. 
Pois depois de ter morrido tantas vezes o irônico é que você ainda continua vivo.

Mas o problema não é ficar sozinho. O problema é quando nós ouvimos o escuro falar.

"Eu estava te esperando. Agora eu vou lhe ensinar a mentir."


Continua.










Nota: Este provavelmente é um dos últimos textos do blog. A última série, talvez. Durante quase dois anos o teor das minhas histórias mudou. O tom que eu uso já é muito diferente do tom que havia no começo. Os amores são outros, os personagens são outros, o tema é outro. Isso não é amor é uma série inconcluida, num rítmo Tarantinesco, que durante todo este tempo me acompanhou com uma inconstância de linhas do tempo. Pois agora o escritor mudou, e o eu lírico, ou você lírico, como gosto de chamar, também é outro. Portanto esta série torna-se o final não concluído do Isso não é amor. De uma história que nunca acabou. E o prenúncio de uma nova história que começa. Pois a vida é um Tarot de Porcelana. A irracionalidade e o caos da nossa sorte ditam o nosso futuro. E ainda assim tudo é tão sensível, e nós somos tão delicados, com almas tão frágeis, feito porcelana. E agora eu estou apenas distribuindo as cartas para jogar a sorte.

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