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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A alegoria da Noite.

Escrito para a corrente literária "O que a noite nos reserva?" - Escrito ao som de algumas canções de Nick Cave & the Bad Seeds. Ainda que fuja um pouco ao tema, este texto é sobre a noite.  Agradecimentos ao amigo Marcelo Rezende. 

Ainda que seja a noite dentro de todos nós.

O início.

O inferno é negro.
Acordei no escuro. Tanto fazia se estava de olhos abertos ou fechados, apenas não via. Estava nua. Mas tanto fazia, no escuro ninguém ia me ver nua. Tentei me levantar. Apanhei o lençol da cama e me enrolei nele. A escuridão preenchia todo o lugar. Chamei. Ouvi apenas a minha voz em retorno. Assim que pisei no chão senti a textura. Vidro. Vidro? Era perfeitamente liso, podia ser cerâmica. Um passo. Dois passos. Ouvia apenas a respiração e a fricção dos pés. Não tem rejuntes. Vidro? Mas era tudo negro. Os olhos foram acostumando-se com o escuro. Via agora as paredes da sala. Também negras. Mas não via as arestas das paredes. Parecia estar em uma caixa sem quinas, imersa em um balde de petróleo. Tudo tão escuro. Caminhei. Três, quatro, cinco passos. Toquei a parede. Fria feito gelo. Perfeitamente lisa. Vidro? Desci os dedos tateando até o chão. No encontro da parede com o chão, as arestas haviam sido perfeitamente aparadas. Não encontrei linhas, mas apenas uma suave curva. O chão apenas abaulava-se e iniciava as paredes. Era uma sala redonda, sem janelas, sem portas, sem nada. Apenas escuridão.

Sete dias de escuro. Sete rostos. 

A Mãe.

Ela chegou. Não abriu porta alguma. Num momento eu pisquei, noutro ela estava a minha frente. Tinha o rosto encarquilhado de. Vestia lã negra.  Eu conseguia ver apenas o rosto, e as dobras das vestes. Tinha o cabelo emaranhado. Nas mãos trazia uma vasilha.

- Come. - Disse através das banguelas. A voz não era mais do que um ruído rouco.

- Quem é você? O que eu estou fazendo aqui? Eu preciso de roupas, por favor.

- Come. - Disse novamente. 

Os olhos encobertos pela sombra estavam fitados em mim. Eu não via. Mas sabia.

- Você está com fome. - Por entre os lábios havia apenas banguela, um fio de saliva formou-se entre a língua e o lábio quando ela falou. Tão velha que parecia que as aranhas teciam as teias na boca da velha.

Só então que eu dei-me do meu atual estado. Nua. Atirada ao chão. E com fome. Tentei cobrir-me, agarrei o lençol. E meu estômago rugiu, pedindo o que quer que fosse que ela carregava na vasilha.

Atirou a vasilha aos meus pés. Assim que caiu e tombou, laranjas, pitangas, mangas e uma dezena de frutas, saíram rolando pelo chão aos meus pés. Engatinhei e apanhei a pequena fruta mais próxima. Ainda que estivesse escuro e eu visse apenas as silhuetas rolando pelo chão, pude ver a cor laranja da pitanga. Mastiguei. Senti o azedo. Ardeu-me a garganta. Desceu. Mais uma. Procurei uma. Peguei duas. Engatinhava voraz atrás de mais comida. Apanhei uma laranja. Rasguei a casca com as mãos e o sumo escorreu pelos meus braços. Apertei a fruta e senti o suco nos meus lábios. Escorria pelos meus seios. Pelos braços. Tinha fome

Ela ria.

As frutas nas minhas mãos tornaram-se podres. A laranja despedaçou-se em pedaços cinzentos. Um caldo negro formava poças sob meus joelhos. Vermes corriam pelas cascas. O bolor verde cobria toda a comida que eu via.

A velha ria.

Vomitei. E tudo o que eu via sair de mim eram frutas podres mastigadas. Aquilo cobria-me. Quanto mais vomitava mais me sujava e isso fazia-me vomitar ainda mais. 

Ela apenas ria.

Tentei engatinhar, apanhar a velha. Escorreguei na nojeira, caí de cara no chão. Os vermes rastejavam na minha frente.

A voz rouca era um cacarejo quando ria.

Desmaiei.

A Enfermeira.

Acordei novamente na cela de vidro. Acordei quando ouvi os passos. Ainda estava enfiada na sujeira, deitada da mesma forma que caíra. Eu vi a mulher de branco atravessar a sala. Os saltos tiquetaqueavam a cada passo. Caminhou sobre o vômito, sobre a podridão. Sem se importar com os respingos que maculavam a meia de calça branca. Parou na minha frente. Eu continuava deitada, sentia ânsias, mas a única coisa que sentia era a queimação do estômago vazio na gargante. 

- Me ajuda. - Um sussurro saiu borbulhante da minha boca, espalhando o líquido pelo chão.

Mas tudo que obtive foi um chute direto na barriga.

- Sua porca. Imunda. Olha só o que você fez. Não sabe comer não? Vou ter que cuidar de você até você morrer é? Espalhou toda a comida pelo chão, deixou aí e agora está tudo podre. Tomara que você morra mesmo. Você devia ter morrido. Se afogado no próprio vômito. Assim eu nunca mais ia ver vocês. Espero que esses vermes tenham comido seus olhos. Assim você nunca mais vai me enxergar.

Eu não via. Mas não era pela falta de olhos. Estava deitada , encolhida, suja, chorava, implorava ajuda. Ouvia ela mexer na valise, ouvia o tilintar de ferramentas. Tudo o que eu recebi em troca de implorar fora apenas um balde de água fria. Direto na cabeça.

Ela sorria.

- Agora você vai ficar limpinha.

Rios de vômito e podridão escorriam pela sala, sendo levados pela água. Quanto mais eu implorava mais ela me jogava água. O frio começou a tomar conta. Meu corpo chapinhava a água. Mas o pior veio depois. Com uma bucha ela me esfregou.

- Não adianta se debater. Eu vou fazer você ficar limpa.

Esfregou-me até deixar-me em carne viva. Não adiantava resistir. Ela era mais forte.

Por fim, deixou-me sangrando no chão.

Saiu levando os lençóis sujos. Ao menos deixara-me lençóis novos.

O Escravo.

Acordei por causa da luz. Ele parou na minha frente. Sorria. Os dentes brancos destacavam-se dos lábios negros. Ele era tão negro quanto aquela sala. Vestia uma camisa de contas prateadas. A luz vinha dele. Cada conta cintilava. Feito estrelas refletidas no mar, as contas moviam-se ritmadas pela respiração.

Sorria.

Ele nunca disse-me palavra alguma. Limitou-se a apanhar-me. Puxar o lençol. Sendo muito maior que eu, mais forte, com os músculos retestados ele levantou-me com um braço só. Apanhou-me pelo braço e olhou-me nos olhos. Seus dedos estavam firmemente apertados nos meus braços. Ergueu-me como uma criança ergue uma boneca. O colosso feito de obsidiana levantou-me do chão. O que eu vi fora apenas o tremeluzir das contas de prata. Possuiu-me ali. Violou-me feitou uma puta barata. Apanhou-me nos braços e  segurou-me no colo. Fez o que queria de mim. Violentou-me enquanto eu chorava, arranhava, fazia a pele negra sangrar.

E fez tudo isto sorrindo.

Largou-me ao chão. Chorando. E saiu levando as contas de prata. Nunca me disse nada, mesmo tendo sido pior do que qualquer palavra que um dia me disseram.

Enrolei-me nos lençóis e chorei.

O Duplo.

Eu sorria. Vi-me caminhando através da sala. Estava nua. Via as marcas que meus pés deixavam no chão. Vi-me andando e vi-me sorrindo. Vi-me. Mas não era eu. O que eu via na minha frente era apenas uma cópia. Como se eu estivesse vendo um reflexo meu, eu vim em minha direção. Estava aproximando-me cada vez mais. Ergui o braço e toquei meu rosto. Eu estava de frente para mim, enquanto estava deitada no chão. Senti a mão que tocava meu rosto. Tudo era tão familiar. Conhecia o formato dos dedos que me tocavam, a cor dor olhos que me fitavam e os cabelos que caíam sobre mim. O que eu via era um ser perfeitamente igual a mim. Mas tinha o sorriso. Eu ria, mas sabia que eu nunca conseguiria dar um sorriso daquele jeito. Plástico, duro, fixo.

Eu agarrei nos meus cabelos. Eu caí. Rolamos pelo chão nos estapeando. Eu continuava com o sorriso plástico no rosto. Queria arrancar aquilo do meu rosto de qualquer jeito. Senti as unhas enfiando na minha carne. Quando gritei, foi minha voz que eu ouvi. Enfiei os dedos nos meus olhos. Senti a massa gelatinosa escorrendo junto com sangue nas minhas mãos.

Eu gritei.

Debatia-me. E enquanto deixei-me no chão sem os olhos eu levantei. Em pé, apanhei-me pela parte de trás dos cabelos. Quando puxei, a máscara deslizou facilmente. Não haviam ossos, não havia sangue. Apenas um branco esqueleto de porcelana, reluzente como as paredes de vidro mas branco. No buraco que outrora eram os olhos havia agora apenas um óleo negro, escorria pela porcelana, pigava no chão e desaparecia na escuridão do piso. A máquina soltou um silvo. Começou baixo, como uma chaleira. Mas elevou-se até tornar-se insuportável. O que era para ser o maxilar desprendeu-se do resto do conjunto, e caiu com um baque. Pouco a pouco outras partes foram se desmantelando. Os membros soltavam-se dentro da capa de pele inerte. Como objetos largados dentro de uma sacola seus pedaços foram espalhando-se.

Eu via-me deitada no chão. Quebrada. Como uma boneca feia e desmontada.

O silvo parou. Joguei a máscara sobre os restos da máquina e deitei-me.

Adormeci, ainda com meu sangue nas mãos.

O Fauno

Em meio a escuridão ele veio caminhando. Seus cascos ecoavam pela cela. Vi a figura aproximando-se. Metade homem, metade cabra metade homem. Sua pelagem era castanha e subia-lhe até a cintura, dali para cima ele não vestia nada. Vi os músculos delineados de sua barriga, e o peito encoberto pela barba. Ele sorria.

- Olá minha ninfa!
- Não sou ninfa nenhuma.
- Pois agora é!
- Posso ser qualquer coisa, se você ao menos me falar que lugar é esse.
- Então você não é nada, minha bela! Quer uma canção?
- Quero sair daqui.

Carregava um alaúde. Tocou uma nota triste e disse-me:

- Ora! Você é tão bela. Daria um beijo para felicitar o velho fauno?
- Não! Eu quero sair daqui!
- Colabore comigo e um dia eu farei uma canção sobre nós. O bravo Fauno que resgatou a Princesa da Cela de Vidro. Que tal?
- Como você se chama?
- Eu perderia todos os meus poderes se eu lhe falasse meu nome.
- Que perca-os.
- Perderia então minha voz. Perderia minha lábia, e a capacidade de amar. Daria ao menos uma madeixa dos seus cabelos, para eu lembrar-me sempre desta aventura?
- De onde você veio?
- Me dá. Eu quero um pedaço do seu cabelo, preciso guardar.

Aproximou-se com os cascos batendo. Senti o cheiro almíscarado da pelagem. Largou o alaúde e tirou um punhal da cintura.

- VOCÊ É MINHA! - Gritou, quando avançava sobre mim.

Ele tinha bafo de cerveja, era muito mais forte que eu, e eu estava fraca. Ele tentava segurar-me, imobilizar-me. Com uma volta por trás de mim ele colocou o punhal na minha garganta.

-Shhhh, agora fique quietinha.

Apanhou-me pelos cabelos. Tomou um cacho cheio nas mãos e cortou rente ao couro cabeludo. Ao soltar-me, eu virei e vi que ele esfregava-os no rosto.

- Sim, sim. Era isso que o Fauno queria. Agora eu tenho a princesa só para mim. Transformarei os cabelos nas cordas do alaúde e farei as mais belas canções.

Olhou-me. Agora ele sorria.

- Obrigado minha princesa! Agora já tenho o que eu quero.
- E você não vai me tirar daqui?
- Você não conhece a verdade sobre os faunos?
- Que verdade?
- Nunca confie em um.

Apanhou o alaúde e foi-se caminhando, enquanto cantarolava uma melodia.

 Homem da mão vermelha. 

Ele estava sentado em uma poltrona que não estivera ali. Fumava um charuto. E sorria.
A mão que segurava o charuto parecia feita de pedra. Cor de granito. Os veios corriam pelo braço. Os pequenos cristais irradiavam luz. Mas naquela sala não havia luz. Havia apenas fumaça pairando.

Ainda que não houvesse iluminação eu conseguia perfeitamente enxergá-lo. Talvez A luz de algum modo passasse através da parede de vidro. Mas parecia impossível, era tudo tão escuro.

- Que bom que você acordou. - Ele disse. Filetes de fumaça saíam do seu nariz.

Tinha medo de dizer qualquer coisa. Ainda não sabia que lugar era aquele. Se atrevesse a perguntar ele poderia me bater, como a outra fez.  Mas perguntei.

- Que lugar é este?

- Chamo-o de Noite, apenas.

Noite era um bom nome, na verdade. Escura. Fria. Com paredes negras que nos cobrem, tomam o horizonte da visão. Sufoca-nos no vazio. Olhar para o céu da noite era como olhar para as paredes daquela cela. Via o negro e sabia que nunca poderia transpassá-lo. Via o céu e sabia que meus pés nunca sairiam do chão.- Me tire daqui. Por favor.

- Você tem uma última decisão a fazer. Aqui eu tenho um punhal. Dez passos adiante você tem os outros. A mãe, A Enfermeira, O Sátiro, O Escravo e o Duplo. Apanhe o punhal, mate um deles e a porta está aberta agora. Eles foram meus, todo o tempo. E basta escolher qual deles lhe fez sofrer mais. Eles foram os algozes do seu sofrimento, agora é sua vez de ser o carrasco.

Apanhei o punhal, passei pelo Homem da Mão Vermelha e fui em direção à eles. Vi-os amarrados, pendurados em cordas feito porcos para o abate.

- Basta apenas escolher.

- Então eu escolho-me.

Não mataria nenhum dos outros. Talvez quando todos eles estivessem mortos mais voltariam. Pagar o que eles me fizeram sentir não era nada, eu ainda continuaria presa naquela cela. Enfiei o punhal na minha barriga. Atrás de mim eu ouvia a risada do Homem. Como se as paredes consumissem-me tudo fechou-se no meu olhar. A cela diminuía, tudo ficava mais estreito e cada vez mais escuro. Até que a escuridão me engoliu.

- Bela escolha. Agora durma, minha filha. A dor acabou.

Os cinzentos.

Sentia chuva. Sentia grama. Quando abri os olhos não via mais o negro. Via o céu cinza e os pingos que caíam sobre mim. A sujeira escura de vários dias sem banho vagarosamente começou a escorrer. Via ao redor de mim uma dezena de pessoas. Todos vestiam mantos cinzas. Estavam empapados pela chuva, mas pareciam não sentir frio. Um senhor aproximou-se, estendeu a mão a mim para ajudar-me a levantar.

Eles sorriam.

- A dor acabou. Agora é dia, e a noite se foi. Agora somos todos irmãos. Você está livre do purgatório. Sua alma agora não sentirá mais dor, seu corpo está livre, sem frio ou fome.

- Não há mais agonia. Toda a dor humana não nos pertence aqui. Agora você é livre. Não há cela alguma.

- Cante conosco. Sorria. Abrace-nos. Agora há apenas amor.

- Somos todos irmãos.

Estávamos envoltos pela natureza. Via pinheiros, a grama salpicada de flores amarelas, a relva verde estendia-se até onde os olhos alcançavam.

- Venha, que eu lhe apresento o lugar.

Um apanhou minhas mãos e levou-me. Agora eu era livre. Eu fui, e nunca mais voltei.

A oração.

As criaturas da noite correrão atrás de nós.
A noite nos encobrirá. Seremos tomados pelo negro. Iremos ser cercados. Perderemos as esperanças. Nossos sonhos serão consumidos. As paredes negras do desespero da noite se fecharão sobre nossas cabeças. Correremos nossas vidas desamparados na escuridão. Tropeçaremos, cairemos. E iremos chorar. Até o fim dos nossos dias iremos chorar. Choraremos pois as nossas vidas não valeram de nada. Pois no fim nós acaberemos apenas como um pedaço de carne morta e enterrada. Enquanto isso seguiremos vivendo. Mas seguiremos no escuro. A vida é um grande pedaço de noite. Como se caminhássemos no escuro, sem saber por onde andamos. De olhos embotados pela escuridão não saberemos o que nos espera. A noite é a dúvida. A noite é a dor. Proteja-me então. Guarde-me a luz. Ilumine-me. Pois eu sei que apenas o amor irá afastar a escuridão. Juntemo-nos aos irmãos, às mães, às esposas e esposos, aos amigos. Juntemo-nos aqueles que segurarão nossas mãos. Que segurarão os archotes iluminando os nossos passos.

Ainda que a noite nos consuma. Ainda que sejamos feitos de dor. Ainda que os dias passem e nos façam sofrer. Eles nos darão luz.

Um comentário:

  1. Texto elegante. No meu texto para a corrente citei os Sátiros, muitas das vezes comparados ao Fauno por causa da aparência, apesar de o primeiro ter uma natureza diferente. O fauno é mais humanizado.

    Gosto de textos diferentes, que saiam da mesmice. O seu é um. Parabéns!

    Fernanda

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