Páginas

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

1979

Hoje faz chuva. Eu gosto de chuva.

Gosto da chuva no final das tardes de verão. Daquelas subitamente vêm, e tão quão rapidamente vão. Das enxurradas momentâneas seguidas de um sol escaldante. Gosto do vento que a precede. O prenúncio que escurece o céu, faz tremer as janelas. Que novamente como veio vai. Gosto dos dias que se vão úmidos, abrindo espaço para o crepúsculo fresco. Lembro-me quando caminhava no céu roxo, no final do dia. Vendo as fachadas dos prédios riscadas pelas gotas de água que caíram oblíquas. 
Gosto do cheiro que vem com as primeiras gotas. O cheiro do asfalto quente refrescando-se.

"Fecha a janela que vai chover"
"Como você sabe?"
"Estou sentindo o cheiro"

Cubram os espelhos.

 Estas chuvas me fazem lembrar dos campos ciganos.

O despertar da vinha junto com a noite. Homens que chegavam cansados e mulheres exaustas de tanto trabalhar com os afazeres domésticos. Para mim eles não tinham nome. Não tinham rosto. Eu apenas os chamava de Os Ciganos da Chuva. Vistos de longe eram apenas um borrão de roupas coloridas, cabelos pretos e pele escura. Minha vida toda, ano após ano eu os via, sempre na mesma época, no mesmo lugar. Os chamava de Ciganos da Chuva pois sempre que vinham traziam consigo as canções e a chuva. Assim como o asfalto prenunciava a chuva com o cheiro fresco, o ar ficava mais leve com a chegada dos Ciganos. Eu sempre sabia que eles estavam por chegar. Sempre que vinham, se ficássemos quietos e parássemos de respirar, podíamos ouvir as suas canções. Lá longe, atrás da linha das árvores, após o anoitecer nós víamos a fumaça levantando. Sabíamos que os homens faziam as fogueiras e as mulheres cozinhavam. E consigo eles traziam a chuva nos finais das tardes de verão.

A primeira coisa que se sentia com o aproximar da noite era o vento frio. O farfalhar leve das árvores. Não sabíamos se o barulho nas árvores era o vozerio dos ciganos, ou a própria natureza anunciando-se para cantar. Conforme o sol baixava o céu tornava-se arroxeado. As primeiras colunas de fumaça levantavam no horizonte. Depois nós sentíamos o cheiro da comida. Embora estivessem longe nós ainda assim sentíamos o cheiro da carne de porco dentro das nossas casas. Era como se nós pudéssemos ouvir a gordura quente pingando na lenha e fervilhando. Ouvíamos então os primeiros anúncios das canções. As mulheres gritavam em uma língua desconhecida. Como lobos eles uivavam à lua, longos gritos lamurientos eram ouvidos através das árvores. Nunca soubemos se eram os ciganos ou cães com inveja das canções. Como a chuva, a canção vinha em torrentes. Longos períodos de silêncio seguidos pela mais bela canção que todos nós já havíamos ouvido. Nossos corações paravam à cada pausa silenciosa. Nunca sabíamos se aquela era a última música, nunca sabíamos se um dia os ciganos iam voltar. Ouvíamos acordeons, bandolins e palmas. A música era tão forte que o próprio chão parecia tremer para acompanhar a percussão. Durante as primeiras horas da noite este festival continuava. E então subitamente, feito a chuva, eles paravam. Silenciavam. Deixavam nossas almas mudas de contemplação. 

Com o silêncio vinha a chuva. Apagando as fogueiras e levando o cheiro de comida para longe. As chuvas duravam horas. Sempre que os ciganos cantavam chovia. E aquilo me fazia feliz. Eu gostava de sair correr na chuva. Sentia os pingos que batiam no meu corpo gelarem a alma. Mas não importava o frio, não importavam os pés descalços. Importava-me apenas fechar os olhos, sentir a chuva, sentir a energia dos ciganos em mim. Sentir a música que vinha lavando a minha alma. 

E feito os ciganos, eu sentia-me livre.