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sábado, 28 de janeiro de 2012

Jantando coelhos.

        Para Isabela e Naiara, que com a aleatoriedade me ajudaram na história.


        "O problema é que quando a gente vê muitos fantasmas nós não sabemos quem é real e quem não é." - Eu disse para o Senhor Coelho.
        "E quem você anda vendo?" - Ele perguntou-me. Estava sentado na minha mesa da cozinha.
        "Sei lá, muita gente. Todo lugar que eu vou. Você olha pra eles e sabe que eles não são daqui." - Eu disse servindo-me de uma xícara de café.
        "Mas você parou de sair, senhor telepata." - A sua ironia me enojava. E ele lá, com as grands patas peludas cruzadas olhando para mim com desdém.
        "Parei justamente por sua causa."
        "E o que foi que eu fiz?"
        "Entrou na minha casa, seu babaca."
        "Mas você ainda tem uma coisinha pra me ajudar, eu não saio daqui enquanto você não me ajudar."

        Nós estávamos presos em uma armadilha. Na verdade não era bem uma armadilha. Ele estava. Eu não. Na verdade ele me fez preso da armadilha dele. Mais ou menos assim.
        Ele apareceu indefeso, batendo na minha porta e falando que precisava de ajuda. Como eu não ia ajudá-lo?
        E eis que ele está aqui, faz mais de uma semana. Com a armadilha presa no pé e preso na armadilha da minha vida.
        
        "Essa merda no seu pé está gangrenando." - Disse eu, afastando a pelagem e vendo a pele azul debaixo dos espessos pelos brancos.
        "Você é médico não é?"
        "Não, sou escritor."
        "Que coincidência, eu também."

        Já não bastasse eu ter um coelho falante dentro da minha casa, o bastardo também fala que é escritor.
        O que aconteceu foi o seguinte. Eu tinha uma mulher. Eu tinha livros publicados. Tinha meu carro, minha casa e algum dinheiro. O problema é que ela queria um filho. E no momento em que ela resolveu ir embora, ela levou junto toda a minha criatividade. E depois dela, quem entrou pela porta foi o coelho. E agora ele está aqui, e eu não consigo escrever.
        
        "Porque médico?"
        "É essa sua imponência, esse seu jeito de falar."
        "Não tenho nada disso."
        "E tudo é tão asséptico, tão limpo. Se você não é médico então tem uma mulher nessa casa."
        "Costumava ter."
        "E o que aconteceu?"
        "Ela foi embora."
        "Faz muito tempo?"
        "Logo antes de você chegar."

        Ela me chamava de Boêmio. Eu falava que eram apenas umas cervejinhas. Ela falava que queria um filho. Eu falava que ainda não era a hora. Ela falava que eu tinha que dar mais atenção pra ela. Eu falava que tinha que escrever. Um dia ela falou que ia embora, se eu quisesse mudar, eu sabia o que fazer. Eu fui pro bar. Ela ainda não voltou. Os armários ainda estão cheios de roupas limpas e ainda tem comida na dispensa.
        Mas eu não escrevi mais nada. Eu não saí de casa. E a única coisa que entrou por aquela porta foi esse coelho.
        Faz uma semana que ele está hospedado aqui em casa. Pulando de um lado para o outro e fazendo cocô de bolinhas. Eu não consigo escrever por causa dele. Esse barulho terrível que ele faz quando pula, a armadilha de metal presa ao pé dele sacolejando com um tilintar metálico. Ele me incomoda. Passa pra lá e pra cá, faz um comentário irônico e me provoca. Ri da minha cara, ri da minha história e pede ajuda. Mas toda vez que eu o tento por pra fora ele volta. Então só me resta alimentar o pobre coelho ferido e esperar que ele por si só resolva ir embora da mesma maneira que chegou, de supetão.

        "E aí senhor escritor, quando você vai resolver me ajudar?"
        "E eu sou obrigado a te ajudar?"
        "Se você não me ajudar eu não vou embora."
        "Então eu te ponho pra fora."
        "E eu volto."

        O coelho era meu tormento. Ela não voltar era um calvário. Eu não escrever era o pior de tudo. Mas que merda, eu preciso de uma cerveja.

        "Você não bebe desde que eu cheguei né?"
        "Não, desde que ela foi embora."
        
        Eu rabisco o papel em branco, meia dúzia de palavras. Nada adianta. Eu olho, e tudo o que eu escrevo é abominável.

        "Vai, escreve um poema pra mim."
        "Vai se foder."
        "Olha, assim eu não saio daqui tão cedo. Só saio com poema ou com a minha perna novinha."
        "Mas você parou de sair, senhor telepata."
        Ele parecia tão calmo. Tão provocante. Aposto que aquela armadilha nem doía. Ele só estava lá fazendo aquele joguinho de provocação comigo.

        Mas teve um dia normal, como qualquer outro que eu resolvi sair da cama. Não, aquele não era um dia normal.
        "O problema é que quando a gente vê muitos fantasmas nós não sabemos quem é real e quem não é."
        "E quem você anda vendo?"

        "Parei justamente por sua causa."
        "E o que foi que eu fiz."
        "Entrou na minha casa, seu babaca."
        "Mas você ainda tem uma coisinha pra me ajudar, eu não saio daqui enquanto você não me ajudar."
        O silêncio pairou sobre nós. Eu ouvia a minha respiração, ouvia os seus pequeninos dentinhos roendo o que quer que fosse. Eu tinha que fazer algo. Aquilo não passaria de hoje.
        "Tenho que fazer bosta! Seu coelho de merda!"
        E eu avancei sobre ele. Como o lobo que pula sobre a presa eu pulei na mesa da cozinha. Eu tinha que pegá-lo, destruí-lo, acabar com aquele sorriso idiota de coelho e aquela risada irônica.
        Mas ele foi rápido, e desviou da minha investida.
        "Ora, ora, ora. O senhor escritor resolveu vir atrás de mim? Mas você consegue pular com o pé preso em uma armadilha?"
        Eu olhei para baixo e vi meu pé preso em um grande mecanismo de metal, amarrado à uma corrente. Aquilo doía e tirava-me toda a mobilidade.
        "Parece que não."
        E no relance do olhar meus pés haviam tornado-se grandes patas peludas. Meu corpo estava coberto por uma espessa pelagem branca. Eu via meus bigodes.
        "O tempo todo você foi o coelho"
        "Não, n-n-n-ão, não."
        "Sim."
        E lá estava eu, olhando pra mim mesmo. Aquele era eu, e eu era o coelho. Todo o tempo quem dizia-me aquelas coisas era eu.
        "Quem prendeu você nessa armadilha foi você mesmo. Coelhinho. Você feito a presa mais fácil de todas calmamente amarrou a corda no seu pescoço. Você fez da sua vida a presa perfeita para os seus problemas."
        "O que você quer de mim?"
        "Eu quero você, eu quero a sua vida."
        "Não! Não! Saia da minha casa."
        "Ela foi embora, coelho. Ela foi por sua causa. E você parou de escrever por causa dela. Vai atrás dela e me tire daqui."
        "Mas eu estou com os pés presos."
        "Quem se prendeu nessa merda foi você! Tudo o que aconteceu foi você quem causou!"

        Tudo o que eu posso dizer é que eu não era eu. Eu era o coelho. E eu quando era eu, eu avancei sobre o coelho. E eu tive aquele animal nas minhas mãos. Tive todos os meus medos saindo pelo meu peito garganta afora. Toda a névoa que encobria-me foi dissipada com a primeira mordida.
        Tudo o que eu posso dizer é que eu jantei coelho naquela noite.

        Hoje, três meses depois, eu recebo a notícia da publicação do meu próximo livro. Ele chama-se "Jantando coelhos" e começa assim:

        Às vezes os coelhos batem à nossa porta. Cabe a nós deixá-los entrar, ou não. Se você prende o seu pé em uma armadilha, ninguém vai te tirar de lá senão você mesmo. E se esse coelho entrar na sua vida, você vai ter que acabar jantando coelhos.
        Eu tive que aprender a viver com as minhas falhas, tive que remediar as feridas pra curar aquelas de quem eu amo. Pra tirar o meu pé da armadilha eu tive que primeiro descobrir que eu era o coelho.


        Hoje, três meses depois, eu descubro que vou ser pai.


        

sábado, 21 de janeiro de 2012

dezoito16

        Preto no braco.
        Vermelho na carne.
        E meu corpo no seu.


        Como se tudo fosse inevitável começou porque era eu. Se fosse outro não seria e se eu não estivesse lá na hora certa também não. Começou talvez porque ninguém sabe. Só sei que pra você começou comigo. Começou assim:
        Dedicado à todos vocês, para destruir.
        Um beijo talvez não fosse a palavra certa. O certo pra demonstrar o quão errado nós estávamos. E errado era sibilar as palavras no ouvido do outro. Mas esse errado era certo, e o certo era fazer você minha. Dentre tantos "minhas" que eu fiz de você um deles foi pra ter cada centímetro da sua pele só pra mim. Eu quis te ter de muitas maneiras. Quis sugar todas as tuas memórias, todo o teu passado, ter teu corpo só pra mim e saber das armar que você já usou. 
        Meus pés morrerão ao encostar nos seus.
        E as tuas unhas são a linha tênue entre o prazer e a dor que durante toda a tarde vão delineando rabiscos avermelhados pelas minhas costas. E nessa tarde, é como se navegássemos juntos. Ser teu marinheiro, buscar a sereia no fundo do mar e no meio das cobertas fazê-las das nossas ondas. E o que fiz foi afogar-me no mar de você, trazer pra dentro do teu pulmão os teus sons de como quem não consegue segurá-los. E quanto mais a água subia até meu peito mais nós nos entregávamos um para o outro. O nado sincronizado era a perfeita sincronia de movimentos ritmados que nunca precisaram ser ensaiados.  E o êxtase é por fim quando colocamos a cabeça para fora d'água, enchemos o peito de ar e novamente podemos respirar.
        Os olhos fechados e o movimento cada vez mais devagar só pra te ver louca. Sentir o cheiro da sua pele e passar a mão pelas tuas costas suadas. Ver tua pele arrepiada ao mínimo toque. Sibilar segredos de coberta no teu ouvido. Você se contorcendo, me abraçando, me beijando. E sorrindo. O sorriso, a cabeça virada, a mordida na coberta de quem já não consegue mais ficar em silêncio. E eu entregando-me todo. Você. Eu. Você de crueldade prolongando o inevitável só para me ver sofrer. Pra me ver implorar. Mas não tem como eu não implorar. Olhar para o seu corpo, acariciar os seios, percorrer toda a tua pele com beijos, tudo isso já me faz querer suplicar por você. E violar a tua vergonha. Te despir. Arrancar tuas peças de roupa aos beijos. Arrancar teus gemidos desesperados. À força.
        A falta de pensamentos cadenciados. Não é mais lógica. É só sentir.
        O êxtase.
        O frenesi.
        Os orgasmos.
        Só pra perder o romantismo, perder a razão e perder a compostura.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Texto curto II

        Desta vez, novamente é de madrugada. Desta vez, novamente eu escrevo sobre alguém em um ímpeto de saudade que como nós dizemos "nos causa furacões no peito". E eu vou falar de como você mudou a minha vida. Eu um texto curto eu te escrevo justamente sobre escrever. Do sabor doce que é ter você destrinchando minhas palavras na tua boca e degustando cada nota da minha personalidade. Do quanto eu amo as tuas análises, e eu me abro feito um livro pra ti, deixo-te ler cada parágrafo meu.
        E você, minha boneca, que se faz toda de durona, que nunca admitiu poder entregar-se à alguém simplesmente por amar esta pessoa. Você que acha que não merecem te amar. Você acha que não é boa o suficiente para o amor. Pois eu te digo, o amor que você tem medo de sentir é o que eu posso te dar pra te fazer feliz. E o que mais eu podia querer senão te fazer feliz, simplesmente?
        De textos curtos eu tento encontrar alguma maneira pra dizer o quanto eu te amo. Quisera eu ter esse seu poder analítico. Quisera eu ter tanta facilidade em destrinchar os sentimentos nessa sua minuciosa análise psicológica. Não que eu busque sentido, às vezes o surreal é interessante.
        E todas as coisas que eu escrevo mudaram. Mudaram depois de Chuck Palahniuk. Mudaram depois de Radiohead. Mudaram depois de você.
        Eu falo de crescimento, lembra?
        E o deleite que é me perder nos seus parágrafos, inundar-me da sua sensualidade escrita e perder-me na cadência das tuas rimas.
        E o melhor de ser escritor não é escrever para os outros, é amar alguém que escreve as coisas de você.


V, a minha boneca.

Detrás da bandana.

Este é o primeiro texto de uma história nova. A história de Simon e Eugene Bouvier. Dos irmãos Ezequiel, Benjamin, e Carmensita. E de Carmem. 


        Os pulmões encheram-se de ar. A respirada profunda trouxe consigo o frio ar da noite. Os pulmões esvaziaram-se em um silvo de ar, lento, calmo e comprido. Os pulmões encheram-se de fumaça. A respirada trouxe consigo o gosto amargo do cigarro. A fumaça saiu pelas narinas, fazendo quase que imperceptivelmente o septo arder. Na segunda tragada o vento estava contra o seu rosto, e a fumaça entrou nos olhos. Ardeu, lacrimejou e embaçou a visão. A fumaça saia acompanhada pelo vapor da respiração.
        Ele jogou o toco de cigarro fora e cobriu o rosto com uma bandana que estivera amarrada no pescoço. O frio consumia toda a extensão de pele livre, ainda que fosse pouca. Apenas os olhos e as mãos, e outrora a boca descoberta agora acolhida sob o calor da bandana. Ele vestia sapatos, uma calça de algodão cinza, um sobretudo de lã cinza com as golas levantas, uma camisa branca e um chapéu. Aquele cara estranho, andando e fumando pela rua de madrugada. Se não fosse pelo sobretudo, ele pareceria um caubói de bandana no rosto e chapéu. Se não fosse pela bandana, ele pareceria um Gângster.
        As luzes dos postes iluminavam a rua recém molhada pela chuva e um caleidoscópio de reflexos formava-se em cada poça. Não passavam carros, não haviam luzes acesas nas casas, não havia ninguém. Apenas o Gângster de bandana e as nuvens de fumaça que demoravam para dissipar-se no meio da neblina que ia surgindo com o passar das horas da madrugada.
        Ele sentia o peso da arma no coldre sob seu peito. As pupilas dilatadas estavam sensíveis sob a luz que vinha dos postes. Por mais que estivesse frio, ele suava. Seu coração palpitava e as mãos tremiam. Ele estava eufórico. Ele tinha medo. Ele durante muito tempo esperou por este momento.
        Agora ele era grande. Ele tinha conquistado o poder e iria usá-lo como bem entendesse. Ele era feito de aço. E era livre como o vento. Tinha a arma em suas mãos e o destino de Carmem balançando debilmente sob o fio de uma navalha.
        - Cheguei.
        Ele parou em frente à uma boate. A luz vermelha lhe ofuscou os olhos. Checou os bolsos internos do sobretudo e apanhou uma pequena lata de balas de menta, abriu-a e despejou uma pequena quantia do pó branco que ela continha nas costas de uma das mãos. Com uma forte respirada ele inalou o pó. Como se uma onda elétrica tivesse percorrido seu corpo a tremedeira aumentou.
        Puxou a arma do coldre, engatilhou-a, chegou o tambor e colocou o braço para dentro do casaco. Queria entrar lá já com a arma na mão, mas não queria que ninguém visse. Parou diante da porta, respirou fundo e entrou.
        O lugar era um muquifo quente e mal iluminado. As moças que lá trabalhavam ou já haviam saído, ou estavam ocupadas. Ele sentia cheiro de perfumes baratos, misturados ao cheiro de cigarros. Mas havia um cheiro que lhe incomodava. O cheiro de gente. O cheiro azedo do suor, cheiro impregnado nos sofás, cheiro de pele humana suja, suada. O cheiro dos banheiros era ainda mais nojento, podia ser sentido de longe. O cheiro de urina espalhada pelo chão.
          Ao passar pelo barman ele lhe cumprimentou, Simon ia direto subindo as escadas, ia passar sem fala com ninguém, mas foi interrompido.
        - E aí Simon, qual a de hoje?
        - Quero falar com a Carmem.
        - Sobe lá. Cê quer alguma menina? Algo em especial? Hoje tá meio fraco, mas conversa com ela lá.
        Sem esperar o barman terminar ele subiu as escadas. Passou por um longo corredor de quartos, o cheiro dos quartos era mais insuportável que o dos banheiros. Tinha cheiro de sexo. Não era apenas o cheiro de suor, cheiro de gente. Era misturado com cheiro de sêmen, e com o cheiro das mulheres. Tudoescondido sob um perfume barato. O chão era de um assoalho de madeira mal encerado, haviam buracos e riscos, aquilo não era encerado faziam anos. Quem preocuparia-se em cuidar daquele lugar? Goteiras, paredes descascadas, mofo e o maldito cheiro de sexo.
        Ao final do corredor havia uma porta fechada, ele sabia que era agora. Caminhou calmamente até ela. Ficou alguns segundos parado. Respirou fundo e chutou. O trinco da porta quebrou-se facilmente. E com a arma em punho ele mirou diretamente na cabeça de Carmem. Ela gritava, desesperada, chamava o nome de  Simon e encolhia-se na cadeira. Em frente a ela havia uma mesa onde ela contava dinheiro, um cinzeiro, e alguns copos cheios de bebida. Ele viu a lágrima nos olhos dela. As gotas borravam a maquiagem colorida que escorria pelas rugas do rosto. No pulo do susto o cabelo vermelho pintado fora despenteado. Ela estava encolhida na poltrona, choramingando, paralisada de medo. 
        Ela tremia.
        - S-s-s-simon? O que é isso?
        - Querida Carmem, vim lhe fazer uma visita.
        - Abaixa essa arma, meu filho.
        - Eu tenho um assunto para tratar com você. 
        - O-o q-q-que?
        - Lembra do Eugene Bouvier?
        Ela paralisou-se. Não tremia mais. Não piscava. Não gaguejava. Apenas olhava Simon atônita. Não sabia se o mais assustador era ele conhecer Eugene, ou ele estar ali com uma arma apontada para ela.
        - Você conhece ele?
        - Conheço.
        Ele deu um passo. Apanhou o cigarro aceso no cinzeiro e colocou-o na boca. Ainda mantinha a arma apontada para Carmem. Seu braço não iria se cansar do peso da arma tão cedo. Deu uma tragada e cuspiu-o no chão. Aproximou-se mais ainda dela, e encostou a arma no centro da testa de Carmem. Ela desmanchou-se em lágrimas. Sentia o aço frio na sua pele e teve vontade de urinar. O medo a fez perder o controle da bexiga e ela sentiu o líquido quente descendo por suas pernas e inundando a poltrona. Pigando no chão e molhando seus pés. E enquanto isso Simon apenas parado, impávido, com a arma na cabeça dela.
        - Eu vi cobrar uma coisa. 
        - O que?
        Com um golpe ele virou a mesa que estava entre ele e Carmem. As notas voaram feito uma supernova de papel. As garrafas e copos caíram e quebraram-se, os cacos molhados agora faziam todo o lugar cheirar à álcool. As cinzas diluíram-se no Whisky e fizeram uma papa esbranquiçada no chão. Ele aproximou-se da face dela. Tão perto que ela podia sentir a respiração quente em seu próprio rosto. 
        - Os anos que você roubou dele.
        - Eu não roubei ano algum.
        - Você só fez um filho dele, e depois abandonou-o. Deixou ele e seu filho só para viver nessa vida de luxúria. Durante todos esses anos ele criou seu filho sozinho, te procurando. E você não sabe o quanto eu te procurei, o quanto eu te esperei. E agora eu vim cobrar todos esses anos.
        - Diga a Eugene que eu sinto muito. Eu não queria fazer isso, mas eu precisei.
        Ela não sentiu nada. O tiro na cabeça foi quase indolor. E em questão de instantes infinitesimais ela perdeu a consciência. A bala saiu pelo outro lado da cabeça abrindo um buraco e levando sangue, miolos e cabelos. A parede branca atrás da poltrona ficou salpicada de sangue. As gotas escorriam e os pedaços caíam ao chão. Ela ficou caída com a cabeça para trás na poltrona, com os olhos e a boca abertos. Parecia que podia ver sua própria cabeça destruída, os olhos vidrados de espanto. Ou seria dor?
        Simon guardou a arma no coldre e saiu. 
        - Pelo meu pai, vagabunda.
        Ao descer as escadas foi novamente cumprimentado pelo barman. 
        - Ô, já tá indo?
        - Sim, já resolvi o que tinha que resolver.
        - Gostei da bandana no pescoço, dá um ar de requinte, seu Simon.
        - Obrigado, até mais Carlos.