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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A esfinge.

Para ser lido ao som de Preciso Me Encontrar, do mestre Cartola. Música que vem embalando minha semana.


Estranhos são os segredos que guardamos nos olhos. Escondemos na pele e metemos por entre as dobras das roupas. Disfarçamos com gestos e trejeitos. Tudo para não revelarmos o mistério de nós.

Decifra-me ou te devoro.

Podia muito bem ter sido uma Rainha Egípcia, tinha o porte de tal. O olhar soberano que vê tudo de cima. Com os lábios finos crispados ao som do próprio silêncio. De batom vermelho, delineando com esmero os lábios de guria. Podia muito bem ter sido menina. Com pele lisa, seios pequenos e membros longilíneos. Vi-a deslizar pela plataforma com a graça de uma garça. Podia muito bem ter sido bailarina. Que com passos largos entrou no ônibus. Valsou no segredo do olhar, buscando na canção silenciosa um lugar para encostar. Podia muito bem ter sido uma guerreira africana, de cabelo raspado e pele negra. Com os músculos delineados saindo pelas mangas da camisa. Mas tinha mãos de piá, com dedos curtos e unhas roídas. E no cenho dos olhos ficava o vale onde lhe fugia a graça. Com olhos de animal selvagem, a espreita do inimigo. A ferocidade inata transbordava através dos óculos escuros.

Poderia ter havido muita história.

Podia ter dito muita coisa.
Talvez eu diria que ela me deixou sem ar. Que nos segundos em que eu a vi, eu esquadrinhei cada pedaço de pele visível que ela mostrava. Que eu nunca havia visto tamanha beleza. Que na verdade o que eu queria era fazê-la minha naquele momento, não importassem os outros passageiros. Que eu lhe daria a minha vida, e o meu futuro. Que eu não ouvi sinos, nem vi foguetes, que ao invés disso fui tomado por uma penumbra hipnotizante, que fechava-se ao meu redor, que fazia-me afogar pouco a pouco, que me roubava os sons, que cada segundo ela ficava mais distante, sumindo no horizonte da minha visão. Que eu imaginei histórias, que tivemos filhos, e os filhos nos deram netos, que sorrimos e que choramos, e que um dia quando velhos nos demos as mãos e partimos juntos. Que no fim tivemos um fim feliz.

Podia ter sido muita coisa, mas não foi nada. Foi embora, apenas.
Talvez eu diria que por um segundo eu a amei.

Porta Fechando.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Nescafé

Texto Inspirado na música "Nescafé", do Apanhador Só. Escrito para a Corrente Literária de dezembro.


E acontece lá pelo finalzinho da tarde.

Quando tu acorda eu trago um café. Mas não nescafé, que café solúvel é vagabundo. Tem que ser daquele preto, com bastante açúcar, que forma um xarope no fundo. Aí eu te vejo sorrindo, acordando acabada, arrumando o cabelo daquele seu jeito, e digo "do jeito que você gosta". Você me cobra um pouco de colchão, agarrada na xícara de cerâmica marrom me diz "vem deitar comigo". Delineia as rugas da minha testa, e diz "nossa como essa linha é funda", enquanto eu rabisco as linhas que se formam quando tu sorri em um esboço no papel, "mas desenhar é difícil", eu digo, e salpico as sardas do teu rosto com respingos de aquarela marrom. E tu acorda de madrugada falando de abelhas, eu acordo vendo acidentes de carro, "mas calma, foi só um pesadelo", nós dizemos, "Então deita e sonha comigo", dizemos. "Vem deitar comigo", você repete, "Eu vou pegar uma xícara para mim". Quando eu volto você fala dos livros, e eu digo que só vou devolvê-los o dia que nós juntarmos as estantes. "Vem, levanta", eu digo, "Só se você me vestir", tu diz, e enquanto eu amarro os sapatos tu veste o sutiã. Sabemos que nós nos casamos muito mais fácil que os botões da minha camisa, então vestir-se fica muito mais difícil do que voltar pra cama. É que saudade é foda. Só a Getúlio Vargas vazia lá pelas nove da noite sabe os segredos que eu tenho, que eu conto quando tu sai de ônibus, os ipês coroam a saudade e velam com flores mortas a despedida. É que quando eu volto eu encontro meu colchão cheio de cabelinhos enrolados, cheio da linha que liga teu coração ao meu.  Saudade é tipo Café, ainda que você tome preto e cheio de açúcar, ainda que eu tome com leite frio e sem açúcar, cada um sente do seu jeito,  nós concordamos que café solúvel é uma bosta. Concordamos que um dos combustíveis para amar é a saudade, cheia das suas peculiaridades, seja bem doce, ou amarga, sabemos que quando a saudade é artificial o amor fica uma bosta. Quando ficarmos muito tempo sem tomar café ficaremos feito viciados um sem o outro, e que se tomemos muito café ficaremos eufóricos juntos.

Que sintamos saudade feito tomamos café.

De verdade. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

(des)amor

. . .again

Sua vida é a porra de um parágrafo único, escrita em uma carta dobrada dentro de um caderno, onde as folhas misturaram-se, e você não sabe o começo ou fim, comece a ler em qualquer lugar e uma hora você retornará ao mesmo, mas nesta linha você disse que o amor estava morto. Então que o amor acabe. Que venha o nojo. Venha a dor. Venham as chuvas. Esperemos que ela te diga, eu não te amo mais. Talvez você diga que não ama. Eu não diria. Então chore. Que beba, que fume. Que desatine. Que esvazie a alma, que esvazie os olhos. Mas teu peito ainda vai continuar cheio. Ela vai ligar e dizer, podemos ser amigos (?). Eu nunca procurei isso. Procuro o que então? Encontre um bar. O teto baixo, ouça o baixo. Discutindo Poe, Expressionismo e falando putaria. Você vai procurá-la. A primeira você vai dizer, oi. Oi, ela vai responder. Ela vai ser igual à outra, mesmos cabelos, mesmos olhos, quer uma cerveja? Música fluindo e o contato vem. O som está alto, chega perto de mim pra falar. Você chega. Você sente o cheiro da maquiagem no rosto dela, com base, pó, e tintas negras, ela nutre uma beleza asséptica, limpa, cheirando a creme de pele macia e completamente lisa para a noite, cabelo homogêneo, beleza homogênea no , ignorando imundice no chão, pisando em restos de cerveja melada de um copo caído ela é a contrariedade daquele lugar. Você nunca amou coisas normais mesmo. Tão limpa, no meio da imundice, cheirando à rosas em um pub sujo onde todos cheiram cerveja. Mas você gosta das contradições. Ela te pergunta o que você faz, e você diz, sou escritor. Está quente, e o resto da cerveja é só um caldo amargo de dois dedos no fundo da caneca. Mais uma? Vamos sentar? Lá fora? Você pega as duas cervejas e vocês sentam nas mesas externas. As paredes isoladas fazem apenas os graves da música serem ouvidos. Ouve o baixo? Ela não disse o que faz, e você pergunta, o que você faz? Trabalho, ela diz, diz que queria ser como você, pra viver de arte, eu pintei uns quadros, sabia? Mas arte não pagava nem os pincéis, imagine o feijão. Mas ela te perguntou, o que você faz, e você diz, o que eu faço é escrever, eu crio, eu invento, do pó eu faço as letras, do nada eu crio almas e personagens, isto é fazer, é criar, emprego não é criar, emprego é viver, me pergunte como eu vivo que eu te digo que eu trabalho, me pergunte o que eu faço, que eu te faço uma poesia. Ela vai ficar sem ar, e vai te pedir um cigarro. Eu gosto de Poe, ela diz. Você diz que é romântico. Ela diz que o amor está morto. Mas o importante não é amor, é falar dele. Vamos entrar? Ela diz que tem que ir. Então que acabe. Que deixe-a ir embora. Mas não, você diz. Volta, que eu te levo. E ela acaba na sua cama de manhã, procurando a calcinha enquanto você dorme. Ela foi, mas deixou contigo o telefone. Na semana seguinte você estava lá novamente, e conheceu a segunda, e a mesma história acontece, oi, oi, o que você faz? Escrevo, e eu trabalho. Quer uma cerveja? Eu gosto de expressionismo. E a beleza é asséptica. Você pergunta se ela quer entrar, ela diz que tem que ir. Mais um telefone. A terceira disse que não gostava de ler, não passou nem da primeira cerveja. A quarta perguntou se você usava a língua tão bem para trepar quanto usava para falar. Elas eram todas iguais. Vestiam a mesma beleza genérica. Falavam as mesmas frases de efeito manjadas. Cada semana você virava as folhas da sua carta procurando onde você havia escrito sobre amor. O amor está morto. Mas você gosta das coisas fora do normal. Toda semana você ama alguém. Ama, desama, como quem troca de roupa, encontra a princesa da sua vida, que na manhã seguinte é uma vagabunda procurando a calcinha pelo quarto. Você está vazio, amigo. Seu peito está cheio das palavras daquelas que te ligaram, eu não havia dado meu telefone? Mas você perdeu, ou diz para elas que perdeu. Quando todos estão guardados no meio de um caderno feito troféus. Mas uma delas vai ser diferente, uma delas diz que faz teatro, que não trabalha, uma delas disse que o amor não morreu, que na verdade a dor é que é velha e que pode morrer, ela vai te pagar uma cerveja e você vai pegar um cigarro dela. Na hora de ir, ela não vai, diz que vai te levar para casa. Vocês trepam a noite toda, feito macacos, gritam, arranham-se, gemem e mordem-se. Você dorme, e quando acorda ela já foi. Mas ela deixou o telefone. Ela parecia tão igual às outras, no escuro são todas iguais. Mas ela disse que fazia teatro, ela era diferente. Ela achava que o amor estava morto, e você sabia que ela não iria te ligar. A única coisa que ela te daria era uma camisinha usada, largada no chão e o telefone. E quando você tornasse a ligar, ela voltaria, e vocês novamente trepariam feito macacos, mas de manhã a cama estaria fria. Você não teria com quem sorrir, não teria para quem ligar, não teria uma amiga. O amor não é nada mais do que a companhia perfeita para você. E você ia acordar sozinho, o amor estava morto. Então você iria ligar e dizer: Ao menos nós somos amigos?

Love will tear us apart. . .


Ao amigo Guilherme.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A alegoria da Noite.

Escrito para a corrente literária "O que a noite nos reserva?" - Escrito ao som de algumas canções de Nick Cave & the Bad Seeds. Ainda que fuja um pouco ao tema, este texto é sobre a noite.  Agradecimentos ao amigo Marcelo Rezende. 

Ainda que seja a noite dentro de todos nós.

O início.

O inferno é negro.
Acordei no escuro. Tanto fazia se estava de olhos abertos ou fechados, apenas não via. Estava nua. Mas tanto fazia, no escuro ninguém ia me ver nua. Tentei me levantar. Apanhei o lençol da cama e me enrolei nele. A escuridão preenchia todo o lugar. Chamei. Ouvi apenas a minha voz em retorno. Assim que pisei no chão senti a textura. Vidro. Vidro? Era perfeitamente liso, podia ser cerâmica. Um passo. Dois passos. Ouvia apenas a respiração e a fricção dos pés. Não tem rejuntes. Vidro? Mas era tudo negro. Os olhos foram acostumando-se com o escuro. Via agora as paredes da sala. Também negras. Mas não via as arestas das paredes. Parecia estar em uma caixa sem quinas, imersa em um balde de petróleo. Tudo tão escuro. Caminhei. Três, quatro, cinco passos. Toquei a parede. Fria feito gelo. Perfeitamente lisa. Vidro? Desci os dedos tateando até o chão. No encontro da parede com o chão, as arestas haviam sido perfeitamente aparadas. Não encontrei linhas, mas apenas uma suave curva. O chão apenas abaulava-se e iniciava as paredes. Era uma sala redonda, sem janelas, sem portas, sem nada. Apenas escuridão.

Sete dias de escuro. Sete rostos. 

A Mãe.

Ela chegou. Não abriu porta alguma. Num momento eu pisquei, noutro ela estava a minha frente. Tinha o rosto encarquilhado de. Vestia lã negra.  Eu conseguia ver apenas o rosto, e as dobras das vestes. Tinha o cabelo emaranhado. Nas mãos trazia uma vasilha.

- Come. - Disse através das banguelas. A voz não era mais do que um ruído rouco.

- Quem é você? O que eu estou fazendo aqui? Eu preciso de roupas, por favor.

- Come. - Disse novamente. 

Os olhos encobertos pela sombra estavam fitados em mim. Eu não via. Mas sabia.

- Você está com fome. - Por entre os lábios havia apenas banguela, um fio de saliva formou-se entre a língua e o lábio quando ela falou. Tão velha que parecia que as aranhas teciam as teias na boca da velha.

Só então que eu dei-me do meu atual estado. Nua. Atirada ao chão. E com fome. Tentei cobrir-me, agarrei o lençol. E meu estômago rugiu, pedindo o que quer que fosse que ela carregava na vasilha.

Atirou a vasilha aos meus pés. Assim que caiu e tombou, laranjas, pitangas, mangas e uma dezena de frutas, saíram rolando pelo chão aos meus pés. Engatinhei e apanhei a pequena fruta mais próxima. Ainda que estivesse escuro e eu visse apenas as silhuetas rolando pelo chão, pude ver a cor laranja da pitanga. Mastiguei. Senti o azedo. Ardeu-me a garganta. Desceu. Mais uma. Procurei uma. Peguei duas. Engatinhava voraz atrás de mais comida. Apanhei uma laranja. Rasguei a casca com as mãos e o sumo escorreu pelos meus braços. Apertei a fruta e senti o suco nos meus lábios. Escorria pelos meus seios. Pelos braços. Tinha fome

Ela ria.

As frutas nas minhas mãos tornaram-se podres. A laranja despedaçou-se em pedaços cinzentos. Um caldo negro formava poças sob meus joelhos. Vermes corriam pelas cascas. O bolor verde cobria toda a comida que eu via.

A velha ria.

Vomitei. E tudo o que eu via sair de mim eram frutas podres mastigadas. Aquilo cobria-me. Quanto mais vomitava mais me sujava e isso fazia-me vomitar ainda mais. 

Ela apenas ria.

Tentei engatinhar, apanhar a velha. Escorreguei na nojeira, caí de cara no chão. Os vermes rastejavam na minha frente.

A voz rouca era um cacarejo quando ria.

Desmaiei.

A Enfermeira.

Acordei novamente na cela de vidro. Acordei quando ouvi os passos. Ainda estava enfiada na sujeira, deitada da mesma forma que caíra. Eu vi a mulher de branco atravessar a sala. Os saltos tiquetaqueavam a cada passo. Caminhou sobre o vômito, sobre a podridão. Sem se importar com os respingos que maculavam a meia de calça branca. Parou na minha frente. Eu continuava deitada, sentia ânsias, mas a única coisa que sentia era a queimação do estômago vazio na gargante. 

- Me ajuda. - Um sussurro saiu borbulhante da minha boca, espalhando o líquido pelo chão.

Mas tudo que obtive foi um chute direto na barriga.

- Sua porca. Imunda. Olha só o que você fez. Não sabe comer não? Vou ter que cuidar de você até você morrer é? Espalhou toda a comida pelo chão, deixou aí e agora está tudo podre. Tomara que você morra mesmo. Você devia ter morrido. Se afogado no próprio vômito. Assim eu nunca mais ia ver vocês. Espero que esses vermes tenham comido seus olhos. Assim você nunca mais vai me enxergar.

Eu não via. Mas não era pela falta de olhos. Estava deitada , encolhida, suja, chorava, implorava ajuda. Ouvia ela mexer na valise, ouvia o tilintar de ferramentas. Tudo o que eu recebi em troca de implorar fora apenas um balde de água fria. Direto na cabeça.

Ela sorria.

- Agora você vai ficar limpinha.

Rios de vômito e podridão escorriam pela sala, sendo levados pela água. Quanto mais eu implorava mais ela me jogava água. O frio começou a tomar conta. Meu corpo chapinhava a água. Mas o pior veio depois. Com uma bucha ela me esfregou.

- Não adianta se debater. Eu vou fazer você ficar limpa.

Esfregou-me até deixar-me em carne viva. Não adiantava resistir. Ela era mais forte.

Por fim, deixou-me sangrando no chão.

Saiu levando os lençóis sujos. Ao menos deixara-me lençóis novos.

O Escravo.

Acordei por causa da luz. Ele parou na minha frente. Sorria. Os dentes brancos destacavam-se dos lábios negros. Ele era tão negro quanto aquela sala. Vestia uma camisa de contas prateadas. A luz vinha dele. Cada conta cintilava. Feito estrelas refletidas no mar, as contas moviam-se ritmadas pela respiração.

Sorria.

Ele nunca disse-me palavra alguma. Limitou-se a apanhar-me. Puxar o lençol. Sendo muito maior que eu, mais forte, com os músculos retestados ele levantou-me com um braço só. Apanhou-me pelo braço e olhou-me nos olhos. Seus dedos estavam firmemente apertados nos meus braços. Ergueu-me como uma criança ergue uma boneca. O colosso feito de obsidiana levantou-me do chão. O que eu vi fora apenas o tremeluzir das contas de prata. Possuiu-me ali. Violou-me feitou uma puta barata. Apanhou-me nos braços e  segurou-me no colo. Fez o que queria de mim. Violentou-me enquanto eu chorava, arranhava, fazia a pele negra sangrar.

E fez tudo isto sorrindo.

Largou-me ao chão. Chorando. E saiu levando as contas de prata. Nunca me disse nada, mesmo tendo sido pior do que qualquer palavra que um dia me disseram.

Enrolei-me nos lençóis e chorei.

O Duplo.

Eu sorria. Vi-me caminhando através da sala. Estava nua. Via as marcas que meus pés deixavam no chão. Vi-me andando e vi-me sorrindo. Vi-me. Mas não era eu. O que eu via na minha frente era apenas uma cópia. Como se eu estivesse vendo um reflexo meu, eu vim em minha direção. Estava aproximando-me cada vez mais. Ergui o braço e toquei meu rosto. Eu estava de frente para mim, enquanto estava deitada no chão. Senti a mão que tocava meu rosto. Tudo era tão familiar. Conhecia o formato dos dedos que me tocavam, a cor dor olhos que me fitavam e os cabelos que caíam sobre mim. O que eu via era um ser perfeitamente igual a mim. Mas tinha o sorriso. Eu ria, mas sabia que eu nunca conseguiria dar um sorriso daquele jeito. Plástico, duro, fixo.

Eu agarrei nos meus cabelos. Eu caí. Rolamos pelo chão nos estapeando. Eu continuava com o sorriso plástico no rosto. Queria arrancar aquilo do meu rosto de qualquer jeito. Senti as unhas enfiando na minha carne. Quando gritei, foi minha voz que eu ouvi. Enfiei os dedos nos meus olhos. Senti a massa gelatinosa escorrendo junto com sangue nas minhas mãos.

Eu gritei.

Debatia-me. E enquanto deixei-me no chão sem os olhos eu levantei. Em pé, apanhei-me pela parte de trás dos cabelos. Quando puxei, a máscara deslizou facilmente. Não haviam ossos, não havia sangue. Apenas um branco esqueleto de porcelana, reluzente como as paredes de vidro mas branco. No buraco que outrora eram os olhos havia agora apenas um óleo negro, escorria pela porcelana, pigava no chão e desaparecia na escuridão do piso. A máquina soltou um silvo. Começou baixo, como uma chaleira. Mas elevou-se até tornar-se insuportável. O que era para ser o maxilar desprendeu-se do resto do conjunto, e caiu com um baque. Pouco a pouco outras partes foram se desmantelando. Os membros soltavam-se dentro da capa de pele inerte. Como objetos largados dentro de uma sacola seus pedaços foram espalhando-se.

Eu via-me deitada no chão. Quebrada. Como uma boneca feia e desmontada.

O silvo parou. Joguei a máscara sobre os restos da máquina e deitei-me.

Adormeci, ainda com meu sangue nas mãos.

O Fauno

Em meio a escuridão ele veio caminhando. Seus cascos ecoavam pela cela. Vi a figura aproximando-se. Metade homem, metade cabra metade homem. Sua pelagem era castanha e subia-lhe até a cintura, dali para cima ele não vestia nada. Vi os músculos delineados de sua barriga, e o peito encoberto pela barba. Ele sorria.

- Olá minha ninfa!
- Não sou ninfa nenhuma.
- Pois agora é!
- Posso ser qualquer coisa, se você ao menos me falar que lugar é esse.
- Então você não é nada, minha bela! Quer uma canção?
- Quero sair daqui.

Carregava um alaúde. Tocou uma nota triste e disse-me:

- Ora! Você é tão bela. Daria um beijo para felicitar o velho fauno?
- Não! Eu quero sair daqui!
- Colabore comigo e um dia eu farei uma canção sobre nós. O bravo Fauno que resgatou a Princesa da Cela de Vidro. Que tal?
- Como você se chama?
- Eu perderia todos os meus poderes se eu lhe falasse meu nome.
- Que perca-os.
- Perderia então minha voz. Perderia minha lábia, e a capacidade de amar. Daria ao menos uma madeixa dos seus cabelos, para eu lembrar-me sempre desta aventura?
- De onde você veio?
- Me dá. Eu quero um pedaço do seu cabelo, preciso guardar.

Aproximou-se com os cascos batendo. Senti o cheiro almíscarado da pelagem. Largou o alaúde e tirou um punhal da cintura.

- VOCÊ É MINHA! - Gritou, quando avançava sobre mim.

Ele tinha bafo de cerveja, era muito mais forte que eu, e eu estava fraca. Ele tentava segurar-me, imobilizar-me. Com uma volta por trás de mim ele colocou o punhal na minha garganta.

-Shhhh, agora fique quietinha.

Apanhou-me pelos cabelos. Tomou um cacho cheio nas mãos e cortou rente ao couro cabeludo. Ao soltar-me, eu virei e vi que ele esfregava-os no rosto.

- Sim, sim. Era isso que o Fauno queria. Agora eu tenho a princesa só para mim. Transformarei os cabelos nas cordas do alaúde e farei as mais belas canções.

Olhou-me. Agora ele sorria.

- Obrigado minha princesa! Agora já tenho o que eu quero.
- E você não vai me tirar daqui?
- Você não conhece a verdade sobre os faunos?
- Que verdade?
- Nunca confie em um.

Apanhou o alaúde e foi-se caminhando, enquanto cantarolava uma melodia.

 Homem da mão vermelha. 

Ele estava sentado em uma poltrona que não estivera ali. Fumava um charuto. E sorria.
A mão que segurava o charuto parecia feita de pedra. Cor de granito. Os veios corriam pelo braço. Os pequenos cristais irradiavam luz. Mas naquela sala não havia luz. Havia apenas fumaça pairando.

Ainda que não houvesse iluminação eu conseguia perfeitamente enxergá-lo. Talvez A luz de algum modo passasse através da parede de vidro. Mas parecia impossível, era tudo tão escuro.

- Que bom que você acordou. - Ele disse. Filetes de fumaça saíam do seu nariz.

Tinha medo de dizer qualquer coisa. Ainda não sabia que lugar era aquele. Se atrevesse a perguntar ele poderia me bater, como a outra fez.  Mas perguntei.

- Que lugar é este?

- Chamo-o de Noite, apenas.

Noite era um bom nome, na verdade. Escura. Fria. Com paredes negras que nos cobrem, tomam o horizonte da visão. Sufoca-nos no vazio. Olhar para o céu da noite era como olhar para as paredes daquela cela. Via o negro e sabia que nunca poderia transpassá-lo. Via o céu e sabia que meus pés nunca sairiam do chão.- Me tire daqui. Por favor.

- Você tem uma última decisão a fazer. Aqui eu tenho um punhal. Dez passos adiante você tem os outros. A mãe, A Enfermeira, O Sátiro, O Escravo e o Duplo. Apanhe o punhal, mate um deles e a porta está aberta agora. Eles foram meus, todo o tempo. E basta escolher qual deles lhe fez sofrer mais. Eles foram os algozes do seu sofrimento, agora é sua vez de ser o carrasco.

Apanhei o punhal, passei pelo Homem da Mão Vermelha e fui em direção à eles. Vi-os amarrados, pendurados em cordas feito porcos para o abate.

- Basta apenas escolher.

- Então eu escolho-me.

Não mataria nenhum dos outros. Talvez quando todos eles estivessem mortos mais voltariam. Pagar o que eles me fizeram sentir não era nada, eu ainda continuaria presa naquela cela. Enfiei o punhal na minha barriga. Atrás de mim eu ouvia a risada do Homem. Como se as paredes consumissem-me tudo fechou-se no meu olhar. A cela diminuía, tudo ficava mais estreito e cada vez mais escuro. Até que a escuridão me engoliu.

- Bela escolha. Agora durma, minha filha. A dor acabou.

Os cinzentos.

Sentia chuva. Sentia grama. Quando abri os olhos não via mais o negro. Via o céu cinza e os pingos que caíam sobre mim. A sujeira escura de vários dias sem banho vagarosamente começou a escorrer. Via ao redor de mim uma dezena de pessoas. Todos vestiam mantos cinzas. Estavam empapados pela chuva, mas pareciam não sentir frio. Um senhor aproximou-se, estendeu a mão a mim para ajudar-me a levantar.

Eles sorriam.

- A dor acabou. Agora é dia, e a noite se foi. Agora somos todos irmãos. Você está livre do purgatório. Sua alma agora não sentirá mais dor, seu corpo está livre, sem frio ou fome.

- Não há mais agonia. Toda a dor humana não nos pertence aqui. Agora você é livre. Não há cela alguma.

- Cante conosco. Sorria. Abrace-nos. Agora há apenas amor.

- Somos todos irmãos.

Estávamos envoltos pela natureza. Via pinheiros, a grama salpicada de flores amarelas, a relva verde estendia-se até onde os olhos alcançavam.

- Venha, que eu lhe apresento o lugar.

Um apanhou minhas mãos e levou-me. Agora eu era livre. Eu fui, e nunca mais voltei.

A oração.

As criaturas da noite correrão atrás de nós.
A noite nos encobrirá. Seremos tomados pelo negro. Iremos ser cercados. Perderemos as esperanças. Nossos sonhos serão consumidos. As paredes negras do desespero da noite se fecharão sobre nossas cabeças. Correremos nossas vidas desamparados na escuridão. Tropeçaremos, cairemos. E iremos chorar. Até o fim dos nossos dias iremos chorar. Choraremos pois as nossas vidas não valeram de nada. Pois no fim nós acaberemos apenas como um pedaço de carne morta e enterrada. Enquanto isso seguiremos vivendo. Mas seguiremos no escuro. A vida é um grande pedaço de noite. Como se caminhássemos no escuro, sem saber por onde andamos. De olhos embotados pela escuridão não saberemos o que nos espera. A noite é a dúvida. A noite é a dor. Proteja-me então. Guarde-me a luz. Ilumine-me. Pois eu sei que apenas o amor irá afastar a escuridão. Juntemo-nos aos irmãos, às mães, às esposas e esposos, aos amigos. Juntemo-nos aqueles que segurarão nossas mãos. Que segurarão os archotes iluminando os nossos passos.

Ainda que a noite nos consuma. Ainda que sejamos feitos de dor. Ainda que os dias passem e nos façam sofrer. Eles nos darão luz.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Mantenha os Lobos à porta.

Sempre tive medo de cães. Até o dia em que olhei-me no espelho e vi-me como um lobo. Tenho o sangue de um. Fui criado por um.

Esta não é uma história com final feliz. Tampouco triste. É apenas sobre como as coisas deveriam ser.
As fábulas contam assim:

As florestas sempre foram hostis. A natureza imperdoável sufoca vagarosamente a vida que lhe teima em crescer por entre os galhos. Pássaros, insetos, veados e roedores. Todos viviam à mercê da natureza selvagem que era a floresta. 

E haviam Lobos.
Um casal de Lobos e sua matilha.
Como havia de ser, estes lobos eram filhos dos lobos que há muito viviam por lá, estes filhos eram filhos dos filhos, dos filhos, dos filhos, dos lobos que sempre viveram lá. Os Lobos, enfim, viviam sua vida de lobos. Caçavam, voltavam às tocas, davam de comer aos filhotes. Sempre fora assim. O Velho Lobo todos os dias saía da toca, aventurava-se na floresta, por vezes voltava machucado, cansado, mas sempre tinha algo para alimentar os filhotes. Cada dia o Velho Lobo afastava-se mais, ficava mais difícil arrumar a caça para os filhotes. Mas como devia de ser, os filhotes nunca passaram fome. Assim, eles cresceram, tornaram-se fortes graças à caça do pai. E como são as coisas, o Velho Lobo envelhecia, cada vez mais a caça ficava mais difícil. Porém, o Velho Lobo ensinara os filhotes a caçar, agora os filhotes tinham meios de alimentarem-se sozinhos. E assim, todos os dias, os Lobos saíam da toca para caçar. Os Jovens Lobos agora tinham as suas próprias maneiras de alimentarem-se. E assim, como devia de ser, os Jovens Lobos cresceram, caçaram, e tiveram filhos. E os filhos também tiveram filhos, que também tiveram filhos. . . 

Tudo por terem aprendido a caçar.

A pelagem espessa cresce negra na minha cara. Meus olhos castanhos encaram no espelho o Lobo que vai em busca da caça todos os dias. Enquanto as madeixas do Velho Lobo tornam-se cinzas o Jovem Lobo torna-se cada vez mais forte. Graças às lições do pai, o Jovem Lobo vai em busca da própria caça. Constrói a própria vida sobre os alicerces das lições de caça do pai. Caminha, espreita pela floresta em busca da presa, luta, corre pelos campos, tudo de acordo com as lições do Velho Lobo. Sem medo.

Muito obrigado Velho Lobo, por ter me ensinado a caçar. 

Mantenha os medos sempre perto
Mantenha os lobos à porta.
Cace-os, senão caçam você.

Texto Curto - III

. . . novamente.

Mais forte que qualquer cigarro que já traguei. Com seu nome invadindo meus pulmões, entrando peito adentro. A fumaça sairá serpenteando encaracolada pelo meu nariz, enevoando meus olhos feitos seus cabelos que me cobrem. As mãos tomarão lugar nas ancas. Arrancarão suspiros, afagos, gemidos e lufadas de fumaça. A névoa encobrirá as janelas, a fina película de suor filtrará a luz opaca da rua. Assim como o suor que lhe gruda nos seios, uma fina gota escorrerá da vidraça perfeitamente branca da sua pele. Invada-me, viola-me, destrua-me. Queime meus pulmões, arranque todo o meu ar. Até que no fim fique no meu peito apenas teu nome. Gemendo sôfrego, pedindo por favor que me ame. As mãos tremerão, as pernas fraquejarão. O vício irá alimentar o tesão.  Alimentarei-me de ti. Até que as forças se esvaiam, jazeremos cansados no chão, arrastando-nos trôpegos pelos lençóis, encharcados, úmidos, molhados, enevoados e bêbados de nós. Como o cigarro fumado até o filtro largaremo-nos ao chão, com fumaça saindo dos pulmões, fraca, esvaindo-se, até apagar. Ficarão as cinzas espalhadas no chão. Até que novamente, alimentando o vício, acenderei o isqueiro, darei a primeira tragada de ti. 

E tudo começará . . .

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

1979

Hoje faz chuva. Eu gosto de chuva.

Gosto da chuva no final das tardes de verão. Daquelas subitamente vêm, e tão quão rapidamente vão. Das enxurradas momentâneas seguidas de um sol escaldante. Gosto do vento que a precede. O prenúncio que escurece o céu, faz tremer as janelas. Que novamente como veio vai. Gosto dos dias que se vão úmidos, abrindo espaço para o crepúsculo fresco. Lembro-me quando caminhava no céu roxo, no final do dia. Vendo as fachadas dos prédios riscadas pelas gotas de água que caíram oblíquas. 
Gosto do cheiro que vem com as primeiras gotas. O cheiro do asfalto quente refrescando-se.

"Fecha a janela que vai chover"
"Como você sabe?"
"Estou sentindo o cheiro"

Cubram os espelhos.

 Estas chuvas me fazem lembrar dos campos ciganos.

O despertar da vinha junto com a noite. Homens que chegavam cansados e mulheres exaustas de tanto trabalhar com os afazeres domésticos. Para mim eles não tinham nome. Não tinham rosto. Eu apenas os chamava de Os Ciganos da Chuva. Vistos de longe eram apenas um borrão de roupas coloridas, cabelos pretos e pele escura. Minha vida toda, ano após ano eu os via, sempre na mesma época, no mesmo lugar. Os chamava de Ciganos da Chuva pois sempre que vinham traziam consigo as canções e a chuva. Assim como o asfalto prenunciava a chuva com o cheiro fresco, o ar ficava mais leve com a chegada dos Ciganos. Eu sempre sabia que eles estavam por chegar. Sempre que vinham, se ficássemos quietos e parássemos de respirar, podíamos ouvir as suas canções. Lá longe, atrás da linha das árvores, após o anoitecer nós víamos a fumaça levantando. Sabíamos que os homens faziam as fogueiras e as mulheres cozinhavam. E consigo eles traziam a chuva nos finais das tardes de verão.

A primeira coisa que se sentia com o aproximar da noite era o vento frio. O farfalhar leve das árvores. Não sabíamos se o barulho nas árvores era o vozerio dos ciganos, ou a própria natureza anunciando-se para cantar. Conforme o sol baixava o céu tornava-se arroxeado. As primeiras colunas de fumaça levantavam no horizonte. Depois nós sentíamos o cheiro da comida. Embora estivessem longe nós ainda assim sentíamos o cheiro da carne de porco dentro das nossas casas. Era como se nós pudéssemos ouvir a gordura quente pingando na lenha e fervilhando. Ouvíamos então os primeiros anúncios das canções. As mulheres gritavam em uma língua desconhecida. Como lobos eles uivavam à lua, longos gritos lamurientos eram ouvidos através das árvores. Nunca soubemos se eram os ciganos ou cães com inveja das canções. Como a chuva, a canção vinha em torrentes. Longos períodos de silêncio seguidos pela mais bela canção que todos nós já havíamos ouvido. Nossos corações paravam à cada pausa silenciosa. Nunca sabíamos se aquela era a última música, nunca sabíamos se um dia os ciganos iam voltar. Ouvíamos acordeons, bandolins e palmas. A música era tão forte que o próprio chão parecia tremer para acompanhar a percussão. Durante as primeiras horas da noite este festival continuava. E então subitamente, feito a chuva, eles paravam. Silenciavam. Deixavam nossas almas mudas de contemplação. 

Com o silêncio vinha a chuva. Apagando as fogueiras e levando o cheiro de comida para longe. As chuvas duravam horas. Sempre que os ciganos cantavam chovia. E aquilo me fazia feliz. Eu gostava de sair correr na chuva. Sentia os pingos que batiam no meu corpo gelarem a alma. Mas não importava o frio, não importavam os pés descalços. Importava-me apenas fechar os olhos, sentir a chuva, sentir a energia dos ciganos em mim. Sentir a música que vinha lavando a minha alma. 

E feito os ciganos, eu sentia-me livre.

sábado, 25 de agosto de 2012

Ceremony.

Escrita ao som de Ceremony, tocada pelo Radiohead. Com a melhor impersonação de Ian Curtis já vista.


Quantas vezes você não parou e pensou "O que eu estou fazendo aqui?". Foi exatamente esse o problema. Eu não pensei.

Um.
Dois.
Três passos para trás.
Se eu fosse um índio africano a partir de agora eu seria considerado um homem.
Mas como eu sou um branquelo ocidental as pessoas me chamam de babaca por fazer isto.
Quatro.
Expire.
Cinco.
Um passo.
Seis.
Um passo.
Sete.
Feche os punhos. Inspire.
Oito.
Pule.

E não há deus que vá te ajudar. Não adianta rezar. Chorar. Gritar. Agora já foi. Sem piloto automático você está sob seu próprio comando. Mas a gravidade teimosa lhe insiste em puxar para baixo. Você não vai voar. E a água sob seus pés chega cada vez mais perto. A queda é tão rápida que você não tempo para pensar.

Mas você pensa em tudo.

"Que diabos eu estou fazendo?"

Você não é um índio africano. Não é deus. Tampouco um pássaro. Então você simplesmente cai.
Mas cair não é uma palavra que descreve o que você sente de forma suficiente. Cai é uma palavra muito curta, feito o tempo que você levou para cair. Mas se existisse uma palavra para designar o que você sentiu ela seria uma palavra gigantesca. A queda durou muito tempo para você. A queda foi a partir do momento em que você nasceu, até o o momento que enfim morreu. A queda foi a sua vida toda. A coisa mais longa que já fez, e que é essa sua miserável vida. Apenas afundando, sendo puxado para o inominável abismo sem fim.

E nesse segundo você se sente como um índio africano. Pinta seu rosto com as cores de guerra. Veste o traje cerimonial. Apanha os amuletos, é abençoado pelo Xamã e pula. E este é o momento mais importante da sua vida. Agora você é um homem.

Este é o momento mais importante da sua vida. E é exatamente igual a ela todinha.
"Por que eu estou fazendo isso?"

Pinte-se com as cores que lhe dizem para pintar-se. Esconda seu rosto debaixo de camadas e camadas de mentiras. Vista o traje cerimonial e vá de terno e gravata para o trabalho. Apanhe os amuletos, sua carteira, celular, chave do carro. Seja abençoado pelo Xamã, sua mulher vai lhe desejar um bom trabalho. E pule. Este é o momento mais importante da sua vida. Agora você é um homem.

E durante toda a sua vida, o que você faz é pular de inúmeros penhascos. Apenas para ser um homem. Mas você não tem tempo para pensar. A queda é muito rápida.
E quando você chega lá em baixo há água.

Se você fosse um índio africano assim que você caísse os outros homens iriam lhe resgatar. Fariam você cuspir toda a água e recobrar a consciência. Lhe receberiam com festa, afinal agora você é um deles.

"E agora que eu pulei, o que há lá em baixo?"

Você foi abençoado a partir do momento que nasceu. A partir do momento que pulou. E toda a sua vida simplesmente encaminhava-se para este momento. Depois de pular vai haver água? Vai haver alguém para lhe resgatar?

Assim que você cai seus membros amortecem e você não tem força para remar em busca de ar. Você afunda como uma pedra. Vê a luz tremeluzindo na superfície da água. E a mesma água que lhe dá esperança é a água que te sufoca. Você foi feito para morrer dentro dela. E ela, que tão bonita e agradável foi feita para te matar. Cada um com a parte que lhe cabe.

Assim que você nasce você não tem força. E a morte lhe puxa cada vez mais para perto. Nós nascemos já morrendo. E o nosso tempo diminui cada vez mais. A vida que você vive é a mesma que te mata. Você foi feito para morrer. E a vida para acabar.

Então bata os braços com toda a força. Seja o índio africano. Mas não precise das mãos te puxando nas águas da vida para te salvar. Deixe que a vida te mate, mas pelo menos viva.  E todo o momento em que a água lhe inundar os pulmões reme cada vez mais em busca de ar. Deixe que a água lave a tinta da sua cara. Deixe que seus amuletos afundem na penumbra da lama do fundo do lago. Perca suas roupas enquanto nada, elas só servem para te atrasar. Livre-se de tudo que você carregou consigo. Tenha algum motivo para viver, para respirar. E quando você sair da água, sair da vida, saia limpo. Apenas para poder dizer: Agora eu sou um homem.

Então eu pulei. E não tive tempo algum para pensar. Apenas gritei. E senti a água da lagoa formada pela cachoeira chegando cada vez mais perto. Até que eu caí. E quando eu saí, encharcado, ofegante, dolorido, eu era um homem. Limpo. Uma outra pessoa. Feito os índios africanos.


"Afinal, o que você está fazendo aqui?"

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Leave Before the Lights Come On.

Conclusão da história que começou com Bullet With Butterfly Wings

Você adormeceu achando que ela iria voltar da igreja. Sabendo que ela não havia ido pra rezar você deitou na sua cama e fez as suas orações. Você não rezava desde moleque, talvez por medo, insegurança, ou por saber que ela não ia voltar você juntou as mãos e rezou. Não para Deus. Não para divindade alguma. Mas para si mesmo. Implorando baixinho, murmurando para a sua alma, fiel de mentirinha, crente egoísta. Deitou-se na cama, mas não dormiu.
Ficou apenas olhando a luz da rua que entrava ritmicamente pela janela do seu quarto, acompanhando a curva que a luz dos faróis dos carros faziam no feixe da cortina. E aquilo era sufocante.
Sufocante ver o preto das paredes te encarando. O laranja da luz serpenteando.
Olhando a poesia e a seringa no criado mudo. A poesia tinha borrados de tinta. A seringa tinha pingos de sangue encrustado. Cada um com a mancha que lhe cabe.
E você dorme.

Você não viu ela chegar. Sorte sua que você não viu. Se não você teria visto o estado em que ela se encontrava. Tremendo feito um peru ela vasculhou as suas gavetas. Com todas as forças controlava os pés para não fazer barulho enquanto andava. As feridas na pele haviam voltado. E os feixes de luz da rua a iluminaram quando ela pegou a bíblia.
Ela sabia que você não rezava, por isso havia escondido lá.
Ela pega a última dose que tem, e sai.

Você acorda. Acorda sabendo que ela não vai estar lá. Mas mesmo assim, antes de abrir os olhos você tem esperança de que ela esteja adormecida do seu lado. Você tem esperança de encontrar ela em algum lugar da sua casa. Nem que fosse chapada no chão, ou bêbada no banheiro. Mas ela só lhe deixou o vazio.
Lhe deixou apenas o vazio e a bíblia aberta caída da prateleira da estante.
Se você ao menos rezasse você saberia o que aconteceu.
E você segue a sua vida normalmente, dia após dia sabendo que ela não vai voltar. Você troca os lençóis, os lava até que todo o vestígio do cheiro dela saia. Muda os móveis de lugar e joga fora as garrafas de bebida. Lima os cinzeiros que ela deixou cheios. E se dá por falta da seringa.
Os dias passam. E todos os dias você ainda acha que quando acordar ela vai estar adormecida do teu lado.
Os dias passam e você não vive mais.
Apenas sobrevive.

Se você estivesse acordado você teria visto ela sair. Teria ouvido quando a bíblia caiu no chão. Teria visto quando ela apanhou a seringa e saiu. Teria visto os feixes de luz iluminando a porta fechando devagarinho. Também teria visto quando ela entrou mais uma vez. Quando ela se aproximou da sua cama, abaixou-se e disse: Eu te amo.
E finalmente, teria visto ela sair para não mais voltar.
Ela tomou a última dose de você.

- Ei cara, me arruma um maço de cigarro que eu te pago um boquete. - Diz ela na porta do café para o primeiro que passa.
Afinal, se você sair antes das luzes acenderem você não precisa ver o que fez.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Clique.

Texto escrito para a Corrente Literária, "O que dura pouco para você?".

Dizem que quando você está para morrer você vê a sua vida passando diante dos seus olhos. O problema é que quando eu puxei o gatilho tudo passou rápido de mais.

-Clique-

Nasceu. Dois quilos e pouco. Filho de pai músico, mãe puta. Depois que nasceu o filho a mãe sumiu e nunca mais apareceu. Ficou na mão do pai, coitado. O pai queria que fosse músico também. O filho coitado, nunca tocou uma nota no piano sequer. O pai queria ter casado, não sabia que a mãe do menino era puta. A mãe era puta porque sabia que não prestava pra nada mais, apenas se emprestava para os outros. O pai dizia que ia dar casa, comida e dinheiro toda semana. Ela dizia que já tinha o que precisava. Não quis abortar o filho, já era velha e podia morrer, tinha medo. O pai enfim ficou com a criança. Cresceu forte e bonito o piá, nem parecia que passava fome todo dia, salário de músico não dá pra muita coisa, dizia o pai. Moravam a duas quadras da XV, não que morassem bem, mas a casa era herdada da mãe do pai, e era a única coisa que tinham. Como não tinha quintal pra brincar, tampouco vizinhos da mesma idade, o piá brincava na quinze mesmo. Corria da Osório até a Santos Andrade de pés descalços. E pouco a pouco ele começou a ter a cor da cidade. Os pézinhos sujos conheciam os engraxates da Boca Maldita pelo nome, eram amigos de longa data da mulher-da-cobra, e embora não soubessem o que era Art Noveau eles conheciam bem os portões de ferro dos prédios antigos. Assim, sempre voltando antes das seis, ele voltava da escola, almoçava e ia pra rua. Conhecido dos Lojistas os cumprimentava de vista. Amigo dos mendigos, de tanto jogar bola em frente ao Stuart. Se tinha medo de ficar sozinho? Não. Ele nunca esteve sozinho. Aquela rua era cheia de gente, que embora não soubessem quem ele era, o deixavam seguro. Quantas vezes o guri na sua ignorância não deve ter visto o Trevisan nos bancos da XV e não o reconheceu. Mas infância que é boa, dura pouco e se perde muito rápido. Aos poucos ele foi perdendo o medo da noite, ficando depois das seis. Um dia viu a pedra da Gilda ser roubada, e junto com a pedra foi-se a sua inocência. Ele viu que aquela rua não era o castelo de fantasias dele. Abrindo os olhos ele via a sujeira nos cantos. Volta e meia via os ratos correndo por lá. Mas o pior não eram os ratos, eram as pessoas que viviam com os ratos. Ele não era o único morador daquela rua. Crianças, assim como ele que dormiam debaixo das marquises. Uma vez, cedinho saindo pra escola, ele viu um Rabecão recolhendo um mendigo que havia morrido de frio. Quem diria, que as belas pedras do petit-pavé, que ele já estava tão acostumado a pisar de pés descalços, também podiam matar de frio os desafortunados. O tempo passou. A inocência foi embora. E ele meteu-se com gente que não devia. Crescido à beira da escória, estagnado no meio dos passantes de um lugar que nunca para, a única salvação que ele tinha era meter-se com gente que não devia. Mas a salvação não era salvação do seu futuro, ele já não tinha nenhum mesmo, vindo de onde veio, criado onde foi, não podia-se esperar muito dele. O que ele salvava era o seu tempo. Salvava seus olhos da sujeira que não queria ver. Metendo-se em mais sujeiras ele deixou o passado para trás. Agora viva em outras sarjetas. Acostumou-se com a sujeira pois já fazia parte dela.
Assim, sua infância passou.

-Clique-

Tem coisas que nós deixamos para trás e tentamos esquecê-las. Talvez porque sabemos que nunca mais viveremos outra vez. Talvez por ressentimento por terem ficado para trás. O que fica apenas é o saudosismo dos anos de piá, quando viver era fácil. O que passou, passou. E se pudesse viver de novo viveria exatamente como vivi. O tempo que nós temos para pensar é tão curto quanto o tempo que temos para viver. E o tempo que eu tive pra pensar no que eu vivi foi menor que o tempo em que a bala ficou dentro do tambor da arma. E o que eu pensei, naquele segundo depois de apertar o gatilho, fora no ano em que eu vi os ipês da Osório florescerem. E assim, minha vida se foi, feito os anos, feito as memórias, feito o tempo e feito as flores pisadas na calçada depois da primavera.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

брат - A caixa de ossos.

Você corre pelo pântano. Afunda até os joelhos na lama pestilenta. Respira os gazes tóxicos vindos das águas podres. É tudo tão sem vida. Está tudo morto.
Inclusive eu. E você me deixou assim.
Cada passo faz você afundar-se ainda mais. Cada passo suja as suas roupas ainda mais com a lama. Você sente sede. Você sente fome. E ninguém vai te ajudar.
Tampouco eu. Os mortos não ajudam ninguém.
A terra puxa você para dentro de si. As águas mortas lhe puxam. A lama lhe tira a vida. O ar lhe envenena.
E quem vai lhe dar o último empurrão vai ser eu.
Você sente fome. Corre através das árvores mortas buscando algo para se alimentar. Se você visse um ser vivo sequer você o dilaceraria, avançaria sobre ele feito um leão.
E você me encontra.
Mas eu já estou morto.
O pântano já me levou.
E quem me afogou foi você.
Eu sou agora nada mais que uma caixa de ossos. A carcaça pende apenas os fiapos de carne enegrecida. Você vê o sangue que eu repudiei misturando-se com as piscinas de piche. A pele seca assume a mesma cor da lama na sua pele.
O que corre pelas minhas veias agora é o piche quente. Minha carne agora é feita da lama. E eu respiro fumaça.
E foi você quem me deixou assim.
Você pisou com as botas na minha cabeça e afundou-me no fel.
Egoísmo. Ódio. Você nunca me respeitou. Você quem criou este pântano em mim. Deu-me apenas sujeira.
Mas você ainda sente fome. E meu coração bate dentro da podre caixa de ossos. Coma-o antes que os vermes o comam. Eu sou a sua última chance. Enfie a sua mão e sinta a sua pele queimando em meu sangue. Compartilhe a morte comigo. Apanhe meu coração.
E você mastiga. Sente na sua boca o gosto do betume. Cobre seu rosto com meu sangue negro.
Mas os mortos não ajudam ninguém.
O gosto é amargo. O sangue é alimentado pelos venenos do pântano. E a carne pulsante que você traz nas mãos transforma-se em areia. Pouco a pouco o pântano te sufoca. A sua visão escurece e você lentamente vai caindo nas águas profundas do esquecimento. O pântano lhe consome. Você cai nas piscinas de piche e queima. Queima com o meu sangue.

Eu me levanto e parto.
E o pântano, e você, e o coração transformado em areia ficam no esquecimento, irmão. 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Carinhoso.

Meu coração, não sei porquê, bate feliz quando te vê.

Com os olhos semi-cerrados à luz do sol ele esperava o ônibus. Olhos que ficavam ainda menores quando semi-cerrados. Olhos que tanto ele sabia que ela adorava. Pequenininhos assim, como ela chamava.
E assobiava um samba. Um samba assim que cantava de longa data.
Com uma poesia nas mãos ele embarcou. Lendo os versos de outros poetas ele pensava nos seus para ela. - "Me alimentando de poesia pra vomitar lirismo depois."
E ele dizia. - "Vão escrever histórias de amor sobre nós dois."
E assim, todos os dias, com poesia, samba, e amor, o domingo chegou.
Querido domingo de todos os santos.
Vem, vem, vem, vem domingo.
Dia dos santos, dia dos trabalhadores, dia que os soldados repousam as armas, dia do descanso.
Dia do amor, pra nós.
E assim, como todo outro eles esperavam o domingo chegar. Para enfim darem as mãos. Para enfim juntos serem felizes. Terem juntos o descanso no dia de todos os santos.
- "Então vem, deita na minha cama. Deixa eu encostar o ouvido na concha entre os teus seios. Pra ouvir o barulho do mar ritmado com o compasso do teu peito."
E eles vão dizer: - "Fica, fica, fica, fica meu amor."

Então serei feliz, bem feliz.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Moto Perpétuo.

"O peão matou o rei. E o fez apenas porque era da sua natureza.
As abelhas fizeram o mel. E o fizeram apenas porque era da sua natureza.
As aranhas fizeram as teias, os pássaros os ninhos. E tudo apenas por ser da sua natureza.
E Deus criou e amou os Homens apenas porque era da sua natureza.
E o Homem repudiou Deus apenas por ser da sua natureza."

Amém. Disse a menina.
Amém. Disse o padre.
Amém. Disseram todos.
Ela não era mais uma menina. E as coisas que você escrevera no seu caderno eram um sacrilégio sob o teto da igreja. As coisas que ela fizera não eram sagradas em templo algum.
Amém. Disseram todos. Menos você.
E todos levantaram-se. Mas você já estava de pé.
E todos despediram-se. Mas você já havia saído.
Você esperava a menina. Que já era mulher.
Você esperava amor.
Se ela pudesse sentir dor sentiria onde ela havia se picado.
Mas ela sentia apena o pecado.
Você a esperava.
Ela veio, através da nave da igreja ela caminhava.
E você rígido feito os gárgulas de mármore a esperava.


- Não sabia que você vinha a igreja. 
- Não sabia que podia fumar na igreja.
- Eu não estou dentro. Estava te esperando aqui fora.
- Me esperando por que?
- Tu leu minha carta?
- Eu esqueci minha seringa na tua casa.
- Tu veio chapada pra igreja?
- Eu gosto da arquitetura daqui, sabia?
- Tira esses óculos escuros. Eu quero ver seus olhos.
- Você tem mais um cigarro pra me arrumar?
- Vai pedir cigarro antes de mim de novo?
- Eu nunca pedi você.
- Toma.
- Tem fogo?
- Tenho brasa.
- Obrigada.
- Eu queria que você me entendesse, ao menos.
- Eu queria saber se Deus existe.
- Eu existo.
- Você não acha que já não está faz muito tempo batendo na mesma tecla?
- Tem uma carta lá em casa te esperando. Tem uma cama. Tem o que você quiser.
- Calma. Essa foi só a primeira. Ainda tem mais oito missas.
- Tá fazendo uma novena, eu achei que você não acreditasse em Deus.
- Tô pagando uma promessa.
- E o que você pediu?
- Amor.

domingo, 22 de julho de 2012

Para-sol.

Era tudo em escalas de cinza. E você vivia essa sua vidinha em preto-e-branco. Cama-cozinha e um caderno em branco. Com seus olhos sem cor você via o mundo acontecendo ao seu lado e você deixava tudo perder o brilho.
A água corria sem irradiar luz. A música tocava sem beleza. E a poesia não emocionava mais.
Que belo poeta você se tornou, hein?
Para escrever as coisas belas você precisa viver coisas belas. E o que existe de belo neste azul-tornando-se-cinza das paredes do seu quarto? Os tons de sépia dos gibis não são o que você pode chamar de bonito, certo? Você precisa ver o colorido das coisas. E o seu teto é de madeira, deixando tudo mais escuro por dentro. Há um ipê na frente da sua janela, e seu quarto é virado para o sul.
Não tem luz, não tem cor, não há brilho algum dentro de você.
Que belo poeta você é.
Então o que alinha meu coração ao teu?
As poesias, talvez.

A água corre nas suas mãos mas seu brilho é artificial. Todos os seus dias sob lampadas fluorescentes lhe fizeram ter um brilho estranho na pele. Seu olhos agora estão acostumados à luz artificial. Você já se esqueceu da cor dos seus braços sob o sol. Agora você é apenas iluminado por telas e lâmpadas ecologicamente corretas. Mas de que adianta a luz ecologicamente correta se luz de verdade você não tem?
Criados em salas de aula, escritórios, em frente a televisões e computadores, nós nos esquecemos o que é a luz de verdade. Criados em ambientes anti-sépticos nós nos esquecemos do que é sujar os pés na terra.
Foi isso que te fez perder a poesia, não foi?

Eu almoço angústia e vejo os sorrisos na TV. Vejo os utensílios descartáveis de hotel. Vejo as camas arrumadas e os lençóis trocados todos os dias. Vejo pessoas sorrindo para mim sem ao menos saber quem eu sou. Me desejam um servil bom jantar, mas não estão interessados na minha satisfação. Ah, a doce e servil simpatia. Você pode chamar isso de casa?

Mas ainda faltam as cores e o brilho da água.
Falta o vermelho dos lábios e a risada de menina.
O enrolado dos cabelos, as arestas do sorriso.
Os olhos de fundo de poço.
E você chama tudo isso de saudade.

E você abaixa o para-sol do carro para tirar o sol da sua visão. E no espelho você os olhos fundos. Você vê o castanho. Olha cada centímetro da sua pele. Os lábios e a barba de uma semana. Você vê tantas coisas em si mesmo. Mas teima em ver o mais importante. Você deixou de ver o sol nos seus olhos. Onde foi parar todo o brilho? Você mesmo colocou esta sombra diante de si.
A última coisa que você vê no espelho do para-sol é o seu sorriso.
Mas o que você precisava ver não estava no espelho. E você vê os vinhedos, vê as pradarias e grandes montanhas no horizonte. Você vê a estrada de terra batida e a fina poeria sendo banhada pela luz do sol. E enquanto o sol se põe você sente o calor no seu rosto. A sombra se foi, e sob a luz o castanho dos olhos vira verde.

E o mais importante, ao voltar, você vê o vermelho, vê o brilho, vê o enrolado, e os olhos escuros.
Você vê agora as cores da vida.
Você vê a poesia, o brilho.
vê.

sábado, 21 de julho de 2012

que não é carta mas sempre volta

Texto escrito pela Verônica Hiller, do Girl Sets Fire. Sem maiúscula alguma ela escreveu uma história pra continuar a minha.






você pediu o cigarro com medo de pedir amor. 

ah, e você queria amor. 
você sempre quis.
só que ao contrário, sempre recebeu pontapés. empurrões. olhos roxos. arranhões. e ainda acham que podem te julgar - da tua dor tão forte e intrínseca, que vender o corpo já não fica tão sofrido assim. o que te dói mais, sempre ficou lá dentro. então, você nunca teve muito tempo pra reprovações alheias: você só chegou nessa sarjeta por causa do amor – 

você amou. 
amou e foi feliz, amou e se rasgou, amou e abriu o peito demais. 
amou e se afogou. 
você amou e se perdeu. 
você amou e foi suprir tua abstinência de carinho numa seringa cheia de morfina. 
você amou e só perdeu tudo. 

você amou e agora se prostitui pra pagar tua droga porque um dia só sentiu saudade demais. 

e depois de tudo, depois de se enfiar na lama até o fundo, depois de passar pela mão de meio-mundo, ele surge recusando teu boquete e querendo teu coração. falando do amor por você como se pudesse, como se coubesse. 

o problema é que ele não sabe. 
o problema é que ele te deu os cigarros, te olhou e enxergou teus olhos e a tua dor e só achou bonito. 
o problema é que ele já te invadiu o peito, e não somente entre as pernas. 

ah, e você se tranca. você se engole. você tem medo: você deixa a tua letargia esconder teu amor. 

e ele acredita.
ele não sabe. 
ele é poeta. 
ele tem as mãos delicadas, os olhos sonhadores e a voz macia: ele não sabe nem de metade. 

por isso você demonstra querer só a morfina que ele te paga – teu corpo é barato, mas teu carinho é caro. 
ele te chama de vagabunda e sofre por você. ele te odeia cada vez mais porque te ama. então você sofre junto. você se rasga de vontade dele, mas tem medo. então, você se droga: agora se entorpece pra fugir dele e do amor.

ele só tem que entender que te amar é errado. é sujo. é pesado, delicado. ele só precisa te conhecer até as entranhas e enxergar todas as vísceras pra concluir que quer ir embora. 

porque ele quer voltar pra casa, esquecer da tua cara, só escrever as tais das cartas - depois de se satisfazerem, eles te deixam o dinheiro e sempre vão embora

e ele tem que ir. você precisa cuidar da sua vida, se vender na esquina, se viciar só na morfina. ele só precisa ir embora e fazer tudo isso acabar. levar o amor junto dele, pros teus versos, guardar o lirismo só pra ele. 

então você faz de tudo pra que isso acabe. você quer que ele te odeie e saia da sua vida. porque mesmo que ele fique, quem vai cuidar da tua dor depois ? 

você é só a puta desgraçada que encantou a vida dele sem emoção com os teus espinhos vulgares. e uma hora, ele cansa, vai embora, desaparece. e você vai amá-lo até depois que ele virar as costas. mas os espinhos, estes vão permanecer selvagens. 

até porque, você o ama mas não acredita mais em você mesma. já sabe que não vale a pena. sabe que é só amargo. já conhece toda a cena. 

e no fim, só te resta teu corpo vendido e machucado. só te sobra agradecer à morfina, por te tirar do mundo e te esquentar todo dia. 

e desprezar todo o resto.
porque desse mundo, você só recebeu amor estragado.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

As cartas de amor sempre voltam.

Continuação de Jigsaw Falling Into Place.


E você acorda. E ela ainda dorme. A TV muda tamborila nas paredes com um arco-íris de tons de marrom e cinza. Toda a sua vida é mais ou menos assim, muda em tons de marrom e cinza.
Não, ela não dorme .Ela está chapada na sua cama. E você tem o gosto amargo da ressaca na sua boca.
Você escreve uma história sobre (des)amor.
Você nunca precisou pensar, não fez poesia nem criou histórias. Você só vomitou tudo aquilo que sentia. E aquilo saiu com gosto de fumaça.

"Me dá um cigarro." - Diz ela acordando.
Ela tem os lábios rachados e o cabelo bagunçado. As olheiras a fazem parecer um panda. E seu rosto está coberto por uma cera seca e amarelada que é a sua pele, a carne prende frouxamente nos ossos da face.

"I wanted to destroy everything beatiful i'd never have." - Diz o filme na TV.
A primeira coisa que você pensou quando acordou foi nela.
A primeira coisa que ela pede é um cigarro, e não você.
Você bebeu de mais ontem, não foi? E você tenta se lembrar da história escrevendo-a em um papel.

Os escritores amam de mais. E eu só queria amor. 
As putas amam? E você só queria algo para se drogar.
Eu te dei,
você me deu amor?

Sua cabeça dói. É a ressaca, amigo.

"I wanted the world to hit the bottom." - Diz o filme na TV.
Ela tem sujeira nos cabelos. Ela tem remelas pretas de maquiagem nos olhos. Ela tem a pele branca cheia de cicatrizes pelo corpo.
Ela só te pede um cigarro.
Você só pede companhia.

Das coisas que você me pediu eu cobrei,
e recebi apenas valores de puta pobre.
E de novo você me pediu, 
eu também te pedi.
Eu te dei algo,
você me deu algo?


Ela passou a noite na sua cama. Mas não teve amor. O único amor que havia era o seu. E durante o tempo que ela gemia, virava os olhos e tremia você cuidava dela. Beijava as feridas, secava o suor, lambia as lágrimas.
"Que merda essa foi que você me deu ontem?" - Ela tem hálito de cigarros e embora não tenha fumado faz tempo o cheiro já impregnou-se nos dentes.
O cheiro do cigarro já impregnou nas suas mãos.
"Cadê a porra dos meus cigarros? Só assim pra começar meu dia bem." - Você podia ter tirado as roupas dela enquanto ela dormia. Ela fede suor. Você vê os mamilos através da camiseta.
É tudo tão erótico.
"I wanted to breathe smoke." - Diz o filme na TV.
Você amava a letargia dela.

E no meio da noite eu te disse. "Eu quero ter um filho seu.".
Entre lábios tremendo você me disse. "Eu quero ter um aborto seu."

Foi por isso que você saiu. Ela te deixou, e ficou apenas com o vício, te deixando na abstinência.
Abstinência de amor.

"O que você está escrevendo? São essas poesias de novo? Eu odeio poesia. Por que os caras simplesmente não dizem o que tem para dizer sem ficar fazendo rodeios?" - Ela desperta com a ferida no braço sangrado, e começa a tirar a casca dos machucados das agulhas. - "Arte é uma merda."

"I wanted to burn the Louvre." - Diz o filme na TV.
Tudo em tons de cinza e marrom.

Você deixa a carta no travesseiro.
Ela volta a dormir.
Você sai. E o tempo passa.

Eu só queria que você me amasse além dos cigarros e do vício.
Cada um tem o vício que lhe cabe.
Eu quero amor.


Ela acorda.
E deixa a seringa no travesseiro ao lado da carta não lida.
E sai. E o tempo passa.

As cartas de amor sempre voltam.

sábado, 7 de julho de 2012

Jigsaw falling into place.

Texto baseado na música do Radiohead.
Continuaçao de Le sacre du printemps.

"Mais uma, por favor." - Você diz.
E você tinha dito que iria parar de fumar.
Mas de beber não. E você sorri feito Cheshire.
Você se esquece do seu dia ruim.

A bandinha toca um samba sincopado ali ao lado. E você espera que a canção acabe. Você espera que a sua canção acabe. Você espera que a canção dela acabe.
Você apenas espera. Você pacientemente espera que tudo acabe. Mas sabe que não vai passar.
As batidas reverberam no piso de cerâmica, voltam para seus ouvido e vão parar dentro da sua cabeça. Mas não, não era o samba que te fazia sentir isso. Não, não era o álcool que te fazia sentir isso.
Era ela que te fazia sentir.
Desconforto.

E o que você sentia eram borboletas nos pulmões. Já havia passado das do estômago faz muito tempo. Agora era ruim. Claustrofóbico. E o que você sentia era o seu peito comprimindo as suas costelas para fora. O que você sentia era a sua alma gritando de dentro da sua caixa torácica. Pedindo misericórdia. Pedindo que você parasse de amar. Que parasse de sofrer. Você, pedindo a si mesmo misericórdia. Você está se destruindo.

Ela era só uma puta barata.
Mas alguma coisa ela devia querer de você.

As câmeras capturam um cara bêbado em uma mesa. Arrotando palavras amargas pra quem quiser ouvir. Sibilando as lágrimas. E cantando na batida sincopada um lamento. Você sente as luzes nas suas costas. Você ouve as gurias dançando. Mas você está muito bêbado para ir atrás dela.

E você acende um cigarro.

E tudo aquilo consome você. As luzes ofuscam o seu olhar. As paredes tornam-se difusas. Os rostos agora são apenas um borrão de um sorriso. E lentamente você vai caindo naquela espiral de entorpecimento. Vai se sentindo enjoado. E o gosto ácido vem a sua boca. Você precisa ir ao banheiro. E rápido.

Onde foi que você chegou? Vomitando no banheiro de um botequim qualquer por causa de uma vagabunda que nem lembra mais de você.
Pare de se humilhar.

Mas tudo isso começou muito antes do samba. Muito antes dela ir embora e antes dela fugir de você. Muito antes da primeira cerveja. Muito antes do primeiro cigarro. E tudo o que você disse a ela machucou. - "Palavras são feito uma espingarda de cano curto". - Não era assim que a música preferida dela cantava?

. . .ela te disse que queria algo mais forte pra se entorpecer, que não queria amor. Você disse pra ela que queria conversar. Ela disse pra você que agora não te devia mais nada. Você perguntou para ela o que ela queria. . .

Ela não queria amor. Ela era só uma puta viciada.
Então você deu a ela o que ela queria. E agora ela estava completamente chapada na sua cama. Com os olhos vidrados e sem olhar para lugar algum. Mas de certa forma você amava aquela letargia. Ela ali completamente vulnerável.
Ela fazia você se sentir superior. Ela ia precisar de você enquanto você desse o que ela quisesse.

Ela só queria algo pra se drogar. Você queria amor.
Cada um com o vício que lhe cabe.
Foi aí que começou.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Le sacre du printemps

Continuação de Fel.


Quais segredos você esconde?
"Você tem até o cigarro terminar" - Ela disse. Acendeu um cigarro e colocou-o no cinzeiro ao lado da cama.
Mas ela te devia, não?
Mensurando o tempo em cigarros.

E quanto tempo você perdeu com ela? Você achava que era bom cuspir o amargo do desejo
e assoprar a fumaça de medo do seu peito.
Afinal ela era só uma puta barata, não?
Barata.

E enquanto baratas correm pelo chão acarpetado do motel ela te chupa.
E o cigarro queima. Um cigarro queimando sem ninguém fumar dura no máximo quinze minutos.
Mas você deu uma carteira inteira para ela. Não é por isso que ela está aqui?
E quanto tempo você comprou dela então?

Você sabe apenas do tempo que os cigarros te tomaram por causa dela.
Um cigarro queimando enquanto alguém fuma dura no máximo cinco minutos. É mais ou menos essa a história.
Você fumou avidamente todo o tempo que tinha com ela.
E engasgando-se com a fumaça você disse: "Para, não é isso que eu quero."


Mas você quer rasgar seu peito
esfregar as vísceras na cara dela
dizer o que tem feito
e gritar com esta cadela.


Precipitado.
Medroso.
Fraco.
E vil.

Você compraria uma guria por apenas uma carteira de cigarros?
Mas foi ela quem se vendeu.
Vil.
O que ela esconde você?

Afinal, ela era só uma piada, não?
"Como assim para?" - Ela disse.
Você sabe apenas do tempo que ela te tomou por causa dos cigarros.
"Eu quero conversar." - Você é medroso.

Quatro minutos se passaram.
Ela de quatro na sua frente
no quarto do hotel.
Durante quatro segundos ela te olhou.

Um café oleoso
um cigarro amassado
amor desgostoso
e teu peito descamisado

Visceral.
"Eu vou embora."
E você chora.
"Não estou aqui pra conversar."

Você implora.
"O que é que quer?"
"Eu quero me entorpecer."
Cigarros são muito pouco.

E você compra o tempo dela,
não com cigarros:
"Eu quero algo mais forte,
eu não quero amor."


sexta-feira, 29 de junho de 2012

Fel

Complemento de "Bullet With Butterfly Wings". Pra você que tanto queria um final, ainda não acabou.

"A gente se vê de novo?" - Ela pergunta para você.
E você brinca, dizendo que ela ainda deve algo a você. E sorrindo, deixando uma baforada de cigarro para trás ela vai embora.
É tinta, poeira e fumaça. A cidade toda é assim.
E ela também.

Você lembra do cheiro que ela deixou quando foi.
Era o cigarro.
Aquele cheiro amargo que saía do meio dos dentes amarelos.
E agora, você cheira a sua mão e sente este cheiro.

Você começou a fumar por causa dela.
Mas ela era só uma piada. Uma puta barata.
Uma viciada.
E você viciou-se
nela.
Você sabia que ela se picava. Você viu as marcas.
O que ela tinha de especial?

A cada cigarro que você acendia você esperava que ela lhe viesse pedindo um.
Foi assim que começou, não?

E durante muito tempo a agonia corroeu seus pulmões. Os fez ficarem pretos. E durante muito tempo a saudade corroeu seu peito.
Você está murcho por dentro.
E ainda cheira as suas mãos lembrando dela.

Todos os dias você vai naquele café.
Espera.
E esquenta as mãos em uma xícara.
Acende um cigarro e,
espera.

Até que um dia você vai sair e ela vai dizer- "Ei, eu ainda te devo algo."

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Bullet With Butterfly Wings

        Esta é a história de amor mais bonita que você já viu.
        Esta é a pior história de amor que você um dia vai ler.
        E isso, isso não é amor.
        Amar doentio assim vale a pena?

        "Me arruma uma carteira de cigarros que eu te pago um boquete." - E você vê. Vê os pés sujos. Vê-os descalços. Vê a saia encardida de toda a imundice das ruas. E ela tem a cor da rua. O céu é cinza. E a pele suja tem a mesma roupagem do concreto, do asfalto e do céu.
        "Não, obrigado." - E você para, se vira e intrigado pergunta. - "Eles te pagam tão mal assim?" - Ela é feita de todas as suas síndromes. Ela é feita de todos os seus medos. Ela é feita de tudo o que você sempre escondeu. Tudo o que você sempre evitou.
        Ela é só uma puta de esquina. Uma piada.
        "Não são eles que me pagam mal, é que você é caro para mim." - Os braços parecem um esqueleto embrulhado em seda. A carne pende frouxa nos braços, mal há músculos. Os tendões são cabos de aço repuxados entre as fendas da carne. Mas essa seda tem fios puxados. E na brancura cor de cera uma dezena de pontos vermelhos destacam-se. Feridas criam casca. Queimaduras, picadas. Chagas vermelhas perdidas em uma imensidão de dor.
        E ela era suja.
        "Caro como?" -Ela te olha nos olhos. Por entre os cabelos castanhos imundos você vê as pupilas dilatadas e a pequena íris que desenhavam um contorno minúsculo de azul.
        Ela aproxima-se. Passo-ante-passo veio caminha até você.
        E você tem medo. 
        Os pés descalços ignoram a sujeira, os cacos, e pisam sobre jornais molhados na calçada.
        E ela vinha. Vinha com um sorriso. Vinha com as mãos à frente.
        E ela toca o seu rosto.
        Você sente o gelado das mãos.
        Como se te pegassem pelos cabelos e enfiassem sua cabeça em um balde de gelo ela diz:
        "É mentira. Você não é especial."
        "E você é só uma vagabunda de esquina." - Você lhe responde.
        
        Os segundos passaram-se como se fossem eternidade. E neste tempo vulcões explodiram. Tempestades assolaram os mares. Icebergs despedaçaram-me. Continentes inteiros moveram-se. Gerações e gerações povoaram a terra.
        E ela te olha.
        Te olha com as íris minúsculas.
        Te olhava com as pupilas dilatadas.
        Ela era só uma piada de mau gosto.
        Começou quando eu vi Marla.
        Começou quando eu li Tristessa.
        Começou quando eu li Christiane F.
        E ela era a mistura das três.
        Ela era só uma vagabunda de esquina.
        Uma piada.
        
        "Esse é o elogio mais sincero que alguém já me fez." - Ela Sorri.

        Perca seu carro. Perca seu emprego, sua casa. Sua dignidade.
        Mas não perca o amor da sua vida.
        
        Pergunte-a se ela quer tomar um café. Você lhe deve cigarros.
        Perca seu medo.
        E uma vez na vida, saia da sua zona de conforto.
        Perca os sentidos.
        
        "Quer tomar um café comigo? Eu te pago aqueles cigarros."

        Onde você estava com a cabeça?
        "Sabe, aquela parte do boquete. . . Não precisa." - Você tem medo.
        "Você não entendeu quando eu disse que você não era especial, né?" - As mãos dela tremem enquanto ela coloca açúcar no café. Os pequenos cristais espalham-se pela mesa toda, irradiando pequenos pontos de luz fluorescente contra o revestimento de fórmica. Feito as pupilas. Pequenas íris irradiando luz no fundo de fórmica preta.
        "Que marca você quer?"
        "Marlboro Light, por favor."
        Você entrega os cigarros, ela parece um animal sedento. Uma triste criatura que só queria se entorpecer. Com selvageria ela abre o maço. E ainda dentro da cafeteria ela acende o primeiro cigarro.
        Quem diria que esse cheiro iria ficar encrustado na sua vida.
        "A gente se vê de novo?" - Enquanto ela pergunta você vê fumaça saindo pelo nariz.
        "Se lembra do que você me deve?"
        Ela era só uma piada.

        Perca tudo, mas não perca o amor da sua vida.

        E assim, cada um vai para o seu rumo.
        Aparentemente vocês seguem as suas vidas.
        Vocês esperam nunca mais se encontrar. E vocês acham que na memória só vai ficar a sujeira dos pés, o gosto do café e o cheiro dos cigarros.
        Mas não.
        Afinal, ela era uma piada.
        Mas uma piada muito bem contada.
        Tente contar esta história depois que seus dias forem novamente todos iguais. Depois que sua vida voltar a seguir o fluxo cotidiano.
        Você é monótono. Ela é suja.
       
        Perca tudo.

        Tente dormir. Mas se lembre dela. Não durma. Sinta o cheiro de cigarro nas suas mãos.
        E todo dia, você vai levantar, não vai acordar pois você não vai estar dormindo, e vai arrumar-se. Vai colocar seu terno e vestir a sua rotina.
        E todo dia você vai passar por lá.
        Esperando ouvir. - "Me arruma uma carteira de cigarros."

        Mas você não vai ouvir.
        Você perdeu tudo.

        Até o dia em que você sair do café e ouvir. - "Ei, eu ainda te devo algo."

        Continua.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Penrose

Me atinge da melhor maneira,
como cachaça certeira.

Então vamos falar do tempo, de todas as coisas que eu já fui.
Daquele que sofreu, daquilo tudo que agora sou eu.
De tantos discos que eu ouvi, eles me fizeram
e a história agora flui.

De tantas gurias que eu tive, elas me fizeram.
Discos, gurias e alguns cigarros.
E agora, a história flui.
feito fumaça, esvai.
Assim, igual mas diferente.

Eu me olho no espelho e eu ainda sou o Lucas de dezoito anos atrás.
Eu pego o lápis, escrevo, e não sou o mesmo de um livro atrás.
De tantos livros que eu li, eles me fizeram.

Livros , gurias

discos, cigarros.

his tó ri a

Vai, constrói. Que é isso que você sabe fazer.
Destrói,
         que é pra isso que nós fomos
criados.
E cada coisa que eu fui vivendo,
foi me construindo.
Argamassando os blocos da consciência.
Fundando os pilares da personalidade.
As pedras gastas, o vidro polido
As salas abandonadas
                              os salões suntuosos
Tudo dentro
                 de mim.
De mim.
Escondendo nos degraus as nuâncias
de personalidade.
Construindo assim
Um pavilhão chamado eu.