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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Clube da luta? - Parte III

Continuação de "Vai lá falar de amor", da série isso não é amor.
Parte três: Jack.

Eu sou as lágrimas secas de Jack.


         "Alô, James?"
         "Alô, V?"
         "Era você me ligando todo esse tempo?"
         "Era. Por que você não me atendeu?"
         "Eu não queria falar com você."
         "E por que não?"
         "Porque eu estava chorando."
         "Como assim chorando? Por quê?"
         
Eu sou a voz trêmula de Jack.


         "Por causa de você."
         "Eu fiz alguma coisa?"
         "Fez."


Eu sou o arrependimento de Jack.


         "Quem tinha que estar chorando aqui sou eu."
         "Por que você falou aquilo?"
         "Aquilo o que?"
         "Falar que me ama."


Eu sou as memórias amargas de Jack.


         "Se não fosse verdade, eu não teria falado."
         "Isso me fez chorar."
         "Por que você desligou o telefone?"
         "Porque eu tenho medo."


Eu sou as mentiras de Jack.


         "Medo de que?"
         "De sofrer."
         "Eu não quero te fazer sofrer, pelo contrário. Eu quero te fazer feliz."
         "Eu sei que se eu colocar minhas expectativas, eu vou tomar no cu. Já aconteceram tantas vezes."
         "Essa vez não vai ser igual às tantas outras. Comigo vai ser diferente."


Eu sou as promessas de Jack.


         "Você está muito ocupado agora?"
         "Não."
         "Então passa aqui. Eu quero conversar com você, e ainda tenho os seus cigarros."
         "Quer que eu leve alguma coisa?"
         "Um livro. Mais cigarros e alguma coisa pra beber."
         
Eu sou a esperança de Jack.
         
          "Eu estou chegando aí."
          "Anota meu endereço. . . "

Continua

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Clube da luta? - Parte II


Continuação de "Vai lá falar de amor", da série isso não é amor.



Parte II: Tyler.

         Chore.
         Chore até não poder mais chorar.
         Você me conheceu em uma época estranha da minha vida.
         Quando eu me escondi sob essa máscara cáustica de arrogância, eu achei que era invencível. 

         Chore.
         Chore até seus olhos doerem.
         Mas as lágrimas salgadas derreteram toda a proteção que eu podia ter. Me tornaram uma garota fraca, humilde. 
         De tanto apanhar da vida. De tanto sofrer com os outros, eu achei que o amor nunca seria real pra mim. Outrora eu já havia colocado tantas vezes todas as minhas fichas na esperança no amor de algum cara, e tudo ia água abaixo.
         Aí eu cansei dessa história de amor. 
         
         Chore.
         Chore até faltar o ar.
         Eu maltratei os outros, eu cheguei à uma fase em que eu simplesmente não me importava com o que eu fazia com os outros. De tanto estar cansada de tomar na cara, eu comecei a revidar. Me tornei o pesadelo na vida de muitos caras.

         Chore.
         Chore até não ter mais voz.
         Eu cheguei no fundo do poço.
         Era auto-destruição pura.
         Eu tenho um livro que diz:
A filosofia de vida da Marla é que ela pode morrer à qualquer momento. A tragédia, ela diz, é que isso não aconteceu ainda.
          Durante muito tempo, essa foi a minha filosofia.


         Chore.
         Chore e esconda suas lágrimas na água do chuveiro.
         Só que daí, você me ligou.
         E me disse uma coisa que nunca ninguém tivera me dito:
V, eu amo você.
         Foi aí que eu descobri que eu podia chorar.
         Mas ainda assim, eu precisava máscara cáustica sobre o meu rosto.
         E feito o beijo, eu fugi.
         
         Chore.
         Chore enquanto ouve o telefone tocar.
         Eu sei que você está me ligando.
         Eu não vou atender.
         
         Chore.
         Chore enquanto fala no telefone.
         "Alô, James?"


Continua.

Clube da luta? - I

Continuação de "Vai lá falar de amor", da série isso não é amor. 


Pate I: Marla.

         Eu tinha um livro que dizia mais ou menos assim:
Marla, fumando um cigarro, olhando para os lados.
Mentirosa.Cabelos negros e lábios franceses carnudos. Lábios de sofá italiano de couro preto. Você não me escapa.
         No livro, a história toda começou quando o narrador conhece Marla. 
         Não que eu seja um terrorista psicótico anarquista. Mas a minha história começou quando eu conheci você.
         Não foi bem quando eu conheci você. 
         Foi quando você desligou o telefone depois de me dizer:
 Eu não sou a Cinderela, idiota.
         Antes de você fugir de mim, antes de eu me perder no meio da canção, a batida ainda continuava a tocar.  
         Eu sei que você se pergunta "Por que esse idiota achou que podia me beijar sem mais nem menos?" - Se você me perguntasse isso eu te responderia: "É porque eu me apaixonei por você, assim, sem mais nem menos." 
         E você pouco se importa com paixão, com amor.
         Foi súbito. Eu vi você naquela festa, fui apresentado à você, e simplesmente não sabia o que dizer.
         Eu não sabia seu nome.
         Não sabia o que dizer.
         Fiz o que qualquer canalha poderia fazer: Te chamei pra dançar.
         Aquele papo da claustrofobia de multidões era só charme, eu precisava de algum motivo pra chegar perto de você. Dançar de olhos fechados era uma boa desculpa.
         E a música dizia:
         Stop making the eyes at me, i'll stop making the eyes at you.
         Só que eu só conseguia ficar de olhos fechados.
         E você, feito a personagem do livro, com seus cigarros.
         Porque foi que eu, no dia seguinte resolvi dizer que eu te amo?
         Fora o misto de desejo, afobação e êxtase.
         Eu sei que não ia adiantar. 
         E agora eu não sei o que fazer.
         Você simplesmente fugiu.
         des-a-pa-re-ceu. E não atende mais o telefone.

         "Eu vou ligar mais uma vez para você."


Continua.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Vai lá falar de amor.

Continuação de "Da sacada eu vi,", da série isso não é amor.






Toque.


Silêncio.


Toque.


Silêncio.


Toque.


Silêncio.


"Ela não vai atender."


Toq. . .Clique.


"Alô."
"Alô, V?"
"Quem é?"
"Sou eu, o Jim."
"Como foi que você conseguiu meu telefone?"


Logo antes:

"Alô?"
"Alô, Chris?"
"Oi, Jim."
"Aquela sua amiga, a da festa. . . "
"A V?"
"Sim."
"O que que tem?"
"Qual é o nome dela?"
"Ela não te contou?"
"Não."
"Então não vai ser eu quem vai contar. HAHAHA"
"Me dá o telefone dela?"
"Ela não te deu o telefone dela?"
"Não."
"Então não vai ser eu quem vai dar."
"Ela ficou com algumas coisas minhas."
"Tá, anota aí. . . "


Agora:

"Foi a Chris quem me passou."
"O que você quer?"
"Você ficou com a minha lata de cigarros?"
"Fiquei."
"Onde você mora? Posso ir aí pegar?"


Outra hora, na festa:

"Eu estou cansada de dançar."
"Quer alguma coisa pra beber?"
"Quero ir embora, já está amanhecendo."
"Eu vou lá pegar uma cerveja pra nós."
"Tem cigarro aí?"
"Tenho."
"Me dá, eu vou lá fora fumar. . . "


Agora:

"E por que você acha que eu vou te devolver?"
"Eu não queria os cigarros."
"Tá me ligando por que então?"
"Porque eu quero saber teu nome."
"Victória, tá? Pronto, satisfeito?"
"Não."
"O que foi então?"
"Eu te amo."
"Que porra é essa?"
"É, desde a festa. Eu não consigo parar de pensar em você."
"E você acha que isso é amor?"
"É muito mais que isso."
"Isso não é amor."
"Eu te amo, Victória."
"Foi só um beijo. Eu não sou a Cinderela, idiota."


Clique.


Silêncio.


Toque.Toque.Toque.Toque. . . 

Claustrofobia, meu amor.

Escrito e portanto para ser lido ao som de "C'était salement romantique" da Coeur de Pirate

        Sabe, eu sou claustrofóbico. Claus-tro-fó-bi-co. Palavra bonita, não? Enfim, é isso mesmo. No sentindo mais clínico e neurótico da palavra. Nada de lugares pequenos e mal arejados, teto baixo, ar saturado, muita gente. Que lá vem a suadeira, o pânico, as palpitações.

        Mas não é bem sobre isso que eu vou falar.

        O fato é, é que meu amor é claustrofóbico também.

        Quando eu sinto, ele quer sair. Não consigo trancafia-lo dentro de mim por muito tempo. Talvez porque quando ele venha, ela venha gigantesco e simplesmente não caiba dentro de mim. E me enche feito um balão, toma cada espaço vazio, cada parte livre que eu tenho. E toma conta, completamente. E ele precisa sair. Eu preciso falar, preciso escrever. Eu quis te escrever uma música, ou então te pintar um quadro, feitos das coisas de amor. Só que eu não consigo, meu dom não é esse. E então meu amor resolve escapar pelas palavras, busca o espaço que já fora inundado dentro de mim nas folhas em branco.

E então eu pinto a minha sinfonia com a prosa.

        A “claustrofobia-do-meu-amor” é bem parecida com a minha claustrofobia. Quando esta começa, eu preciso imediatamente sair do lugar, buscar ar fresco, arejar os pulmões. E quando o amor começa, ele simplesmente não aguenta ficar muito tempo quietinho na dele. Quer sair, quer gritar. E pra sair, ele se joga nas minhas palavras que são levadas pelo vento.

        E por mais que pareça banal, eu gosto de dizer tantas vezes que “eu te amo”. Cada vez que eu digo, é um pedacinho que há dentro de mim que eu entrego pra você.

        E então, eu te entrego as minha canções, os meus desenhos e as minhas palavras. Todo o meu amor expresso em arte. Só pra fazê-lo libertar-se do claustro que é a minha carne. Te dou um pedaço da minha alma à cada texto.

        E sabe por que?

        Porque eu te amo.

sábado, 15 de outubro de 2011

Da sacada eu vi,

Continuação de "Minha vida em terceira pessoa.", da série isso não é amor.

        Eu vi as estrelas sumirem no no crepúsculo vespertino. O céu avermelhado engolia as luzes que vinham do infinito. Vi teu cigarro apagando-se aos poucos esquecido no beiral da sacada, o mármore manchado de marrom. 
        E tu só me encarava, com teus olhos de piano, o branco do olho intercalado com o verde da íris, com o negro da pupila. Talvez fosse pelo contraste que eu ficava hipnotizado, branco-verde-preto, tudo muito bem delineado com um contorno tão escuro quanto as pupilas. Ah, essa não-mistura de cor! Contornos que nunca se misturavam, só contrastavam entre si harmoniosamente. Era a ironia estampada nos teus olhos, a inconsistência da harmonia de cores intrínseca ao contraste. Eu podia simplesmente deixar toda aquela luz que refletia dos círculos-concêntricos-de-cor, tudo tão perfeito, tão colorido, tão hipnotizante. 
        Como que eu pude passar a noite toda de olhos fechados?
        O cigarro manchado de batom já fora levado pelo vento, e você nem se importou com as cinzas que manchavam o teu vestido. 
        "Nossa, teu topete está uma bagunça. Vem aqui, deixa eu arrumar." - Você me disse, chegando mais perto de mim. Passando a mão nos meus cabelos. E eu sei, que embora eu tivesse a noite toda colado à ti, cada toque teu ainda era eletrizante, um medo subia-me à barriga na menor iminência de contato.
        E você colocou as duas mãos no meu rosto, segurava-me como quem segura um bebê.
        "Pronto, agora você tá bonito." - E sorriu. O sorriso sincero destacava-se no rosto cansado. 
        E eu segurei tuas mãos juntas do meu rosto. Enlacei meus dedos nos teus e pressionei-os contra minha face. E tu só me olhava sorrindo. Eu vi a pele morena dos teus braços, o tom suave de madeira clara. E o pensamento "Pele-de-indiano" passou-me pela cabeça. Pele que tinha cor de especiarias. Marrom-vermelho-bordô-amarelo. Tinha cheiro de especiarias. O cheiro do desconhecido, cheiro mordaz de curiosidade, do inexplorado, tão pungente quanto o tempero mais ardido de todas as índias.
        Isso despertou as garras do animal mais feroz que há dentro de mim. O desejo vil de simplesmente te possuir. De passar meus braços envolta do teu corpo. Fazer-nos unir em um véu feito dos nossos beijos.
        Nossos olhos travavam um duelo. Nem eu, nem você, nos atrevíamos à desviar o olhar. Eu ainda segurava as tuas mãos.
        E outrora, nós passamos a noite juntos. Trocamos poucas palavras. Preferíamos falar em movimentos. Os corpos unidos, a tua pele suada encostava na minha. E eu, de olhos fechados. Nos poucos momentos em que eu estava perdido na inércia da música, eu abria os olhos. Na melancolia enredada nas guitarras de Radiohead que ecoavam de forma ensurdecedora através do salão do bar, eu vi os movimentos em preto e branco de todos lá dentro. A luz que piscava freneticamente criava uma descontinuidade nos movimentos, um segundo a pessoa movia-se parar uma direção, noutro a escuridão tomava conta do lugar, e no momento seguinte de claridade, na pequena fração visível a pessoa já saíra da trajetória prevista. Eu vi olhos cansados. Vi sorrisos. Vi peles brilhantes. Ouvi vozes, ouvi gritos. E naquele lugar onde todas os sentidos pareciam misturar-se nós não precisávamos falar nada, dizíamos coisas com os movimentos da nossa dança. Os corpos embalados pela batida frenética da música, tocavam-se, afastavam-se, abraçavam-se. Em um ritual primitivo de humanidade, que só nos fazia nossas próprias almas saírem de dentro de nós. Os olhos eram traídos pelas luzes, a música ensurdecia os ouvidos, e eu esbarrava em pessoas que eu sequer sabia quem era. Mas aquilo era fantástico. Eu me entreguei. E durante aquele frenesi, nós fomos um só. Dois seres unidos pela música.
        De volta à sacada, a imponência do teu olhar simplesmente desafiava-me. Tu sorria. Eu me perdia nas linhas dos teus olhos.
        Eu me aproximei do teu sorriso. Não tinha mais nada a fazer senão isto. Senão simplesmente te beijar. E concretizar a união que construiu-se durante toda a noite.
        Eu senti teus lábios com gosto de caramelo. Abracei tua cintura e te trouxe pra mim.
        Eu não ouvi sinos. E não vi estrelas.
        Eu só vi teus olhos vidrados nos meus.
        Teu batom vermelho manchado.
        "Que porra é essa?"
        E tu partiu. Simplesmente assim. Sem dizer teu nome, foi embora com os saltos vermelhos e a saia de pregas. Levou teus olhos e o meu coração.
        E eu ainda vou atrás de ti. V.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Um conto para nós dois.

        Texto escrito em parceria de Verônica Hiller, do Girl Sets Fire.



        Esse é um conto pra se ler de manhã:

        Ela acordou com o barulho dos ovos quebrando.
        Não fora o barulho da máquina de escrever, não fora o barulho da gordura do bacon na frigideira.Tampouco o barulho da cafeteira que a acordara.
        Foram os ovos quebrando.
        A cozinha estava um caos. Ele ia de um lado para o outro. barulhento. Escrevia um parágrafo na máquina de escrever sobre a mesa e voltava para a cozinha cuidar da comida.
        E a barulheira continuava.
        Os talheres batendo, os pratos sendo postos sobre a mesa. E ele sabia que ela tinha o sono pesado, não seria qualquer barulhinho que a acordaria.
        Mas ela acordou com o barulho dos ovos.
        Todas as janelas e portas da casa de verão estavam fechadas. Aquela casa era um lugar peculiar. Quando se permitia estar aberta, ela era uma casa arejada e fresca, ideal para os verões quentes e úmidos. No inverno a casa retraía-se nas janelas fechadas, guardava pra si todo o calor dos ocupantes.
        Ao voltar à mesa, ele cantarolava uma canção baixinha de Edith Piaf, acompanhando o som do rádio.

        je resterai seule à pleurer, mon amour sera bien payé.

        Escreveu mais algumas palavras batidas à máquina. bebericou um gole do café que estava sobre a mesa. Não gostou, estava quente demais. Voltou para cozinha para cuidar da comida.
        Ovos quebrando. Talheres batendo. Uma melodia francesa tocando baixinho.
        Ela piscou os olhos, ainda protegida pela escuridão que o travesseiro em cima de sua cabeça lhe dava: ovos quebrando?
        Jogou o travesseiro no chão e procurou qualquer roupa no chão, para se vestir. Achou uma jaqueta de aviador, uma que ele sempre fazia piada com Barão Vermelho.
        Na ponta dos pés e arrumando o cabelo, ela caminhou até a sala. Seus pés descalços deixavam marcas de umidade no chão escuro de madeira. O assoalho de madeira flutuante absorvia qualquer som que suas pisadas poderiam causar.
        Ao passar por uma das janelas do corredor ela pode ver o grande morro que se estendia abaixo. a terra colorida de verde até onde os olhos podiam ver. As folhas que chacoalhavam com o vento forte. E ela ali, pequenininha, protegida pela jaqueta de aviador, imersa na imensidão de paredes daquela casa, enquanto o mundo acabava lá fora. Eles não precisavam do mundo. só precisavam um do outro.
        Com um pano de prato nos ombros e um chapéu panamá enviesado na cabeça, ele cozinhava atrapalhado qualquer coisa que cheirava a bacon. O café quente já estava na mesa. Ela sorriu. Ele não tinha esquecido do seu açúcar. E também tinha a máquina de escrever, mais alguns papeis espalhados.
Sentou-se na cadeira e começou a ler um trecho do que ele escrevia:

“Pela minha camisa aberta eu vi arranhões no meu peito.
Marcas roxas na cintura.
Nos pulsos eu via marcas de correntes.
Marcas de tiras de couro percorriam toda a extensão dos meus braços.
Eu não sabia como chegara lá. Não sabia o que haviam feito comigo.
Não sabia onde estava.
E aí eu vi uma mulher”.

        Ela abriu mais o sorriso. Provavelmente mais uma de suas histórias para fazer chorar.
        Ele mexeu toda a mistura na panela, ovos, pimentões, bacon, e um golezinho de vinho branco. O vapor subiu e embaçou a lente dos seus óculos. Depositou todo o conteúdo da panela em uma travessa. Ligeiramente enraivecido ele tirou os óculos, colocou-os sobre a bancada da cozinha, ajeitou o chapéu e dirigiu-se à mesa levando os ovos mexidos. Ao virar-se, deu-se conta que ela já havia acordado. E estava lendo o que ele havia escrito. Ela levantou a cabeça das folhas e olhou pra ele.

        - O que é isso ?
        - Ah. Qualquer coisa sobre umas maldições e uns fantasmas. Faz tempo que você levantou ?
        - Não, Não. Acordei com os ovos quebrando.
        - Então bom dia – Ele disse, com as palavras acompanhadas de um sorriso.
        - Ah. Bom dia – Ela respondeu, coçando o olho.

        Ela levantou-se para dar bom dia à ele. Enquanto ela caminhava ao longo da extensão da mesa, para encontra-lo do outro lado, ele viu os passos de gato vindo em sua direção, movimentos que não aparentavam aresta alguma, eram precisos, calmos, imponentes. Os pés pequenos de unhas pintadas, as pernas branquíssimas. Os seios escondidos e ao mesmo tempo não escondidos sob a jaqueta. A curva entre as pernas preenchida por uma pequena nuvem de pelos negros. E ela parou, a alguns centímetros de seu rosto. Ela sorria. Ele poderia beija-la neste momento. A levantaria no colo, a jogaria sobre a mesa, quebraria os pratos. E ali mesmo ele teria ela para si. Iria emaranhar-se nos cabelos enrolados dela, sentir o suor e os arranhões. Viu os olhos negros dela olhando no fundo dos seus, ela sorria. Viu os lábios sem cor formarem alguma palavra em que ele não prestava a atenção. E todo esse momento não durou mais que um segundo. Ele, envolvido completamente na sua imaginação. Começou feito uma cama de gato, tornara-se uma teia, e agora era um grande novelo que enredava todas as imagens criadas pela sua cabeça. Mas o toque dela dissipou o momento. Ele sentiu a mão sobre seu rosto. Novamente recobrou a linha de pensamentos racionais. Pensou que deveria estar parecendo um idiota, assim, perdendo-se para si mesmo nessas horas. Ela beijou-o suavemente.

        - vem, vamos comer.

        Eles se sentaram, um ao lado do outro. A mesa era grande, rústica, de madeira, possuía só três cadeiras, diferentes. Ela levantou os braços, pra ver se as mangas grandes demais da jaqueta desciam e permitiam ela usar as mãos livremente.
        Ela se virou e observou-o de perfil. Ele pôs o café nas duas xícaras e tomou um gole do seu. sem açúcar. Ela imaginou o quanto aquilo devia estar amargo.
        Ela sempre se sentia como uma menininha do lado dele, infantil e sem paciência, enquanto ele se movimentava sem pressa. Uma criança diante das suas poses e degraus de personalidade, o canalha desalmado, o romântico inglês, o petulante arrogante... ela pensou em lhe perguntar qualquer coisa sobre engenharia ou o último livro que ele estava lendo, sem qualquer interesse no que ele falaria realmente, só para ouvi-lo concentrado, escolhendo as palavras certas e falando naquela voz polida e paciente. Ela poderia ficar ali a vida inteira, só sugando cada detalhe dele. Afogar-se na indecisão entre o castanho claro e verde de seus olhos, sentir seu cheiro de pele quente, explodir de raiva e tesão quando ele usava aquele sorriso de canalhice descabida. Esconder-se debaixo de suas asas e esquecer-se do mundo lá fora, do vento uivando atrás das janelas, do cheiro do café subindo em espirais, das roupas espalhadas lá no quarto, dos ovos que se quebraram.

        - Teu café vai esfriar – Ressoou a voz dele, acordando-a do devaneio momentâneo.

        Ela pegou o açucareiro, colocou incontáveis colheres de açúcar.
        Ele sabia que no fim o café dela formaria um xarope de açúcar não dissolvido no fundo da xícara.
        Sabia que os beijos seriam amargos no doce.
        Comeram devagar, conversaram qualquer coisa sobre livros ou filmes. ele terminou primeiro, e ficou vendo ela debruçada sobre o prato, devorando os ovos mexidos com torrada.

        - Você tá com fome, né?
        - Se você não tivesse me lembrado que comida existia, eu nem ia comer.

        Ele mal esperou ela dar a última garfada e logo foi pegando-a no colo. Ela enredou seus braços no pescoço dele e deixou ser carregada para o quarto, sendo posta delicadamente na cama. E então ele deitou junto dela, ambos ignorando que ainda faltavam algumas horas para se voltar pra cama. E assim, eles se beijaram. E só iriam se importar com a presença um do outro, durante o resto do dia.

        Até porque, o dia só estava começando. Era de manhã, afinal. E como toda boa manhã, nunca se acontece muita coisa.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O conto da carta.

        Ela ainda vestia as roupas negras que usara na missa de sétimo dia no dia anterior. Já faziam 8 dias.
        Acordou, trocou-se, colocou os óculos escuros e desceu o prédio para tomar um café. Notou um envelope branco na caixa de correio. Apanhou-o sem ver de onde era.
        Entrou pela porta de vidro do café, sentou-se nos fundos, em um sofá vermelho.
        - Eu quero um café, bem forte, sem açúcar. - Disse à garçonete.
        - Não tá meio escuro aqui pra você usar esses óculos não?
        - Não quero que vejam os ro. . . as olheiras.
        Remexeu na bolsa, procurava o envelope. Rasgou a lateral e puxou uma folha escrita à mão.

        É meu quinto dia aqui, eu sei que essa carta só chegará para você só na sexta ou no sábado.
        Depois que você foi embora, a polícia só chegou de manhã.
        Acho que você não ficou para ver o que aconteceu com ele.
        Foi você quem chamou a polícia? . . . 

        - Tá aqui seu café, moça.
        Ela tomou um gole, e queimou os lábios.
        Retirou os óculos para poder ler melhor. As marcas verdes sobre os olhos eram gritantemente visíveis, outrora eram roxas, pretas, sangue acumulado sob a pele que esvanecia com os dias. Mas o corte no supercílio ainda era visível.

        . . . Se você não tivesse pedido para eu parar de bater nele, nada disso haveria acontecido.
        Mas você se jogou sobre mim, com as unhas nos meus olhos.
        Eu só queria me vingar dele, e por um momento eu descarreguei a minha fúria sobre você, com os meus pulsos.
        Eu não sei como você se desvencilhou e correu de mim, eu estava cego de dor, preso em uma inércia de ódio.
        Não sei para onde você foi, só sei que depois que você saiu eu vi sangue e batom vermelho nas minhas mãos.
        E ao retornar ao quarto eu vi ele lá, semi consciente, com o rosto marcado de socos.
        Mesmo assim eu continuei.
        Minutos antes eu vira ele sobre você, roupas espalhadas, camisinhas usadas pelo chão.
        O que você esperava, que eu nunca iria descobrir?
        Eu sentia o cheiro de porra e suor nos nossos lençóis.
     
        Ela tinha lágrimas de sangue nos olhos, e um gosto amargo na boca.
        Ou seria só sangue seco do corte e o gosto do café?
        Engoliu em seco e continuou lendo.
     
        . . . Não sei quanto tempo ele continuou vivo. Só sei que foi bem antes de eu parar de bater nele.
        Eu não sei quem ele era. Sequer sei o nome dele.
        E durante horas eu esmurrei a carcaça inerte. O corpo com-e-sem vida transformou-se em um boneco de pano nas minhas mãos, não demonstrava reação alguma.
        Ouvi a polícia dizer que o crânio dele havia virado uma papa sob nossos lençóis . . .

        Ela sentiu uma ânsia de vômito. Mas continuou lendo.
     
        . . . Lembra daquela tua estatueta de gárgula?
        Eu fiz o barro virar pó contra os ossos da face dele.
        Suor, porra e uma lama barrenta misturada com o sangue. Tudo isso sob os nossos lençóis, debaixo do nosso teto.
        E depois que acabou, eu simplesmente deitei esperando o amanhecer chegar.
        Não acabou porque eu quis, porque eu não sentia mais vontade.
        Fora porque eu não tinha mais forças. Meus braços já não tinham mais forças para bater na massa úmida sobre a cama.
        Eu estava coberto de sangue. Estava exausto.
        E simplesmente deitei no chão. Olhei para o teto o resto da noite.
        Eu ouvia o sangue pingando, ouvia as moscas chegando.
        E pela manhã, a polícia chegou derrubando a porta. Primeiro bateram pacientemente, depois colocaram tudo abaixo.
        E ao verem a cena o nosso quarto, nem hesitaram. Deram-me socos, ponta-pés, algemaram-me.Chamavam-me de assassino, de doente.
        Eu já não sentia mais nada. Não sentia dor, não sentia raiva. Não sentia desprezo.
        Eu já não sou nada mais. Apenas amor. O resquício do nosso amor fora transformado em ódio, em carnificina. E aqui preso e esperando julgamento, te escrevo essa carta, pra tu lembrar do que tu foi na minha vida.
Com ódio e com amor, J.D.


        Ela terminou de ler a carta. Sentia náuseas.
        Pegou uma caneta da bolsa, e escreveu no verso do papel.
     
        Isso nunca foi amor.

        Endereçou a carta novamente ao remetente, colocou no envelope. Terminou o café. E saiu.

domingo, 2 de outubro de 2011

Sobre casas e amor.

       E eu andava, pisava na areia descalço, deixava algumas pegadas no tempo. Os vales criados pelos meus pés eram preenchidos de água e levados pelo mar. E foi mais ou menos assim que eu vivi durante algum tempo, com águas nos pés. Eu simplesmente andava, e não deixava pegada alguma. Vivi, simplesmente por andar, deixei que a água me envolvesse e molhasse a barra da minha calça. E eu percebi que a cada passo que eu dava, a água insistia em novamente contornar meus pés, fluía rapidamente e grudava na minha pele. Com meus dedos enrugados eu chutei a água, gotas espalharam-se pelo ar. Nada adiantou, a água tomou rapidamente o seu lugar, continuou incólume me cercando, me desafiando. E eu andei.
       E eu descobri, que a única coisa que eu precisava era andar para fora da água. Eu não era obrigado a estar lá, era tão simples. E assim, eu segui em direção à areia. Meus pés empaparem-se de sujeira. Mas a água já secara, e meus pés novamente deixavam a sua marca nas areias do tempo. Os pés cansados começaram a deixar suas pegadas, nada era mais encoberto pela água.
         Foi aí que eu encontrei tuas mãos. Alguém para rabiscar os nossos parágrafos na areia. Alguém que já estivera caminhando distante ao meu lado, que só agora eu fora me aproximar. Peguei nas tuas mãos, afaguei teus cabelos, e nós andamos. E eu quis que tu me contasse teus segredos, me fizesse as tuas perguntas. E como se o amor se alimentasse de arte e beleza ele cresceu, tornou-se grandioso. De ti, eu arranquei o medo que te fazia hesitar. Construí envolta de ti um castelo com paredes feitas de poesia. Só pra ver tu se libertar, alimentar-se da beleza e deixar o amor dentro de ti florescer. 
        Nós caminhamos até a minha casa. Do chão de madeira, às paredes quentes. Antes de entrar eu quis tirar toda a areia dos meus pés. Limpar de mim toda a sujeira da lembrança de onde eu já havia andado. Entrei lá sem que um grão de areia do passado pudesse entrar nos meus olhos. Te apresentei os cômodos, tu sentou-se no sofá e acomodou-se. Eu te fiz aconchegar-se, te encobri de carinho e te dei conforto. E agora, eu quero te levar pro andar superior, te mostrar os quartos mais secretos da minha edificação. Te levar à lugares onde nunca ninguém jamais chegou.
        E quando eu te pus todos os dias pra dormir, na cama de dossel que te encobria de amor, eu derramei minhas palavras sobre ti até tu adormecer. E espero que todos dias quando acordar, tu tenha meus parágrafos pra fazer teu dia. Tenhas contigo a minha voz.