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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O luthier.

        Quando a polícia me perguntou, eu falei que era por amor:

        - "Porque você deixou ele fazer isso com você?" -
        - "Por amor." -
        - "Aquele cara era um doente, ele te sequestrou, ele te mantinha amarrada, te fazia viver sob condições sub-humanas e você fala que amava ele?" -
        - "Eu não amava ele." -
        - "PORRA. Você ama ou não ama ele, qual que é a tua, mulher? Você tá querendo dificultar o nosso trabalho?" -

        Não que o amor fosse importante pra eles. Mas o meu testemunho seria o suficiente para condená-lo. Sem as minhas acusações eles não podiam fazer nada, e ele seria solto. Eles nunca teriam provas das outras pessoas que passaram por ele.

        Eu não fiz por amor.

        Eu fiz por amor à musica.

        - "Eu não fiz por amor, eu fiz pela música." -
        - "Como era o nome dele?" -
        - "Mikahil Kutuzov." -
        - "E o que você fazia pra ele?" -
        - "Eu trabalhava como assistente na luthieria dele. . ." -

        Um dia, eu passava na frente do local. Um senhor na porta fumava um cachimbo. Barba mal feita, rosto completamente enrugado cheio de sardas e pintas. O nariz grande e todo irregular tomava conta da cara inteira. O corpo arcado da idade escondia-se sob uma camisa listrada com os botões superiores abertos. Os cabelos comprido puxados para trás sendo mantidos no lugar por sua própria oleosidade.
        Com uma voz afetada pelo álcool ele me chamou. Eu já havia passado por ele e parei virada de costas. Imóvel, eu não ousava demonstrar reação. Mas aí veio a pergunta.

        - "Você, conhece Tchaikovsky?" -

        Lentamente eu virei-me, impressionada pela estranheza da pergunta.

        - "Lago dos Cisnes, Overture, Marcha Eslava. Ora, é claro." -
        - "Você sabe de onde ele vem?" -

        Aquilo já era estranho demais pra mim.

        No dia seguinte, novamente o hálito alcoólico, o cabelo oleoso e as verrugas.
        E Tchaikovsky.

        - "Ei! Ei garota!" -

        A voz vinha entre as baforadas de fumaça, tinha um som áspero e o sotaque estrangeiro era bem acentuado.

        - "Sabe o Tchaikovsky?" -
        - "Já falei que sim." -
        - "Você já trabalhou algum dia com música?" -
        - "Como assim?" -
        - "Você soa feito Tchaikovsky pra mim, algo no seu jeito de andar. Na cor da sua pele e no movimento dos cabelos. Você tem a mesma austeridade que ele, cada movimento seu pra mim é uma nota. E é justamente esse teu olhar, e quando eu te vi passar, que me fazer te querer aqui, trabalhando comigo."-
        - "Desculpa aí senhor Tchaikovsky, mas eu nem te conheço." -
        - "Me chame de Mikahil, eu venho Votkinsk no leste da Rússia. E eu sou um luthier." -

        E os policiais me bombardeavam de perguntas.

        - "Tá, e daí você simplesmente aceitou trabalhar com o cara sem saber nada sobre fazer violinos?" -
        - "Era pela música." -
        - "E pela música você deixou-o fazer o que ele fez?" -
        - "Ele via a música em todas as coisas." -
        - "Ele era esquizofrênico então"? -
        - "Ele era abençoado. Via música nas vozes, ouvia o murmurar das pessoas em forma de orquestra. Cada gesto tinha um timbre, cada voz era um tom musical." -
        - "E você era Tchaikovsky?" -
        - "Ele via a música nas pessoas." -

        No dia seguinte eu comecei a trabalhar. Anotar recados, fazer pedidos de materiais, receber clientes. Nada que exigisse demasiada capacidade intelectual. Mas tinha apenas uma regra.

        - "Nunca entre no meu atelier, os materiais que eu receber deixe-os na mesa ao lado da porta."-

        E por alguns meses nós seguimos assim. Cordas, madeiras, vernizes, todos postos em cima da pequena mesinha de carvalho esperando pacientemente o grande artesão buscá-los para dar a forma tão desejada do som.

        - "Então quer dizer que você nunca entrou lá dentro?" -
        - "Entrei, claro, quando ele me fez O Convite." -
        - "Que convite?" -
        - "Eu seria a obra prima dele." -

        O trabalho era bom, os clientes eram fáceis de lidar. A rotina burocrática nunca fora problema para mim. As madeiras entravam, os vernizes eram consumidos, todo o trabalho era feito dentro da sala que eu nunca entrara e por fim saía o perfeito instrumento feito sob medida. O instrumento era uma extensão da alma do cliente, cada pincelada na madeira tinha o mesmo brilho dos olhos do músico que empunharia aquele violino. A dobra na madeira era feita sob as curvas do corpo do músico. As cordas eram a voz solidificada em fios de tripa.

        - "Que obra prima é essa?" -
        - "Nós faríamos um instrumento vivo." -
        - "Vivo? COMO ASSIM VIVO?" -
        -  "Um instrumento que captaria a música da pessoa que ele fora feito."-

        Mikahil sabia que eu não aceitaria as condições dele. Sabia que eu ainda não havia encontrado a verdadeira essência da minha música. Eu ainda tinha muito o que aprender com ele.

        - "Então quer dizer que você só entrou no atelier dele quando ele lhe levou desacordada lá para dentro?" -
        - "Ele não queria que eu visse as coisas que haviam dado errado." -
        - "As outras pessoas que ele matou?"-
        - "As pessoas não tinham a música adequada, o som não era forte o suficiente para fazer o instrumento perfeito."-
        - "E o que ele fazia com elas?" -

        Eu demorei muito para aprender com ele.Eu demorei para entender que a dor que eu sentia era o que amplificaria a minha música. E eu gritei, eu forcei as amarras, eu recusei comida, eu resisti à dor. Mas apenas quando eu deixei-me tomar por tudo aquilo que ele era que eu pude compreender o quão importante a música é. A música é o eco da alma de todos nós, são todos os nossos sentimentos transformados em algo físico. A música não é para ser ouvida, é para ser sentida com a alma. Ele ouvia a música das pessoas. E só com a dor eu pude ver o quão grande era a minha.

        - "Por diversas vezes ele tentou transformá-las em cinzas, misturá-las ao verniz e aplicar no instrumento. Outrora ele tentou fazer as cordas. Ou então cozinhou-as em banho lento e demorado para transformar a gordura em cera. Mas ninguém era forte o suficiente, todos eram imperfeitos demais." -
        - "E com você, o que ele fez?" -
        - "Você vê meus braços?" -
        - "O que são esses riscos?" -
        - "Não são riscos. São pautas. Partituras, sinfonias." -
        - "Ele a torturava, lhe cortava, o que ele fazia?" -
        - "Ele escrevia a música em mim, para que eu absorvesse tudo eu pudesse tocar com a alma. A dor me fez aprender a sentir a música com o coração." -

        Nos primeiros dias Mikahil deixava-me amarrada. Dava-me comida, e ensinava-me a música. Ele costumava cantar para mim. Sua voz tinha um timbra grave, rouco e paternal, com cheiro de fumo. Depois, Quando eu comecei a aprender o que eu era, ainda assim eu ficava amarrada, mas podia mover-me pelo estúdio, ajudá-lo no tratamento das madeiras, na construção dos instrumentos.

        - "E quanto tempo você ficou lá?" -
        - "Até a minha família dar por falta de mim." -
        - "E quando eles foram ao atelier, o que ele falou para seus pais?" -
        - "Que eu nunca havia trabalhado lá."-
        - "Mas você não queria sair de lá, ele não te maltratava?" -
        - "Era pela música." -

        Quando ele percebeu que a música em mim já era a suficiente nós começamos a construção da nossa obra prima.

        - "Mas Senhor, não vai doer?" -
        - "Quando você tiver a música você não vai precisar do seio. A música já está no seu coração." -
        - "E o que você vai fazer?" -
        - "Anestesiá-la, não vai doer." -
        - "E com a minha carne?" -
        - "A beleza do seu corpo irá tornar-se a cera que dará brilho ao nosso instrumento." -

        Ele tinha as mãos delicadas, dedos hábeis e movimentos precisos. Com um bisturi ele removeu todo o seio e transformou a gordura e a pele em cera. Com experiência fechou os pontos e estancou o sangue. Eu nem pude sentir dor, tamanho era o amor.

        - "Quer dizer que ele te torturava para fazer um violino?" -
        - "Ele queria a minha essência." -

        Outras partes minhas viraram cera. Os vernizes com cinza diluída foram tirados dos meus dedos.

        - "Sabe, os ossos queimam bem. Nós teremos um bom material." -

        Na delegacia queriam convencer-me de que ele era louco.

        - "Foi ele que mutilou você? Faltam-lhe dedos, seu seio, nacos de carne e músculo pelo corpo inteiro. Você não viu que por causa dele você está nessa cadeira de rodas? Ele te destruiu, ele acabou com a sua vida. Você já foi procurar um médico, já sabe se essas cirurgias não causaram infecção alguma em você?" -
     
        Nós tivemos uma prole. Eu sei que ele amava-me pela minha música. Tudo o que ele tirava-me não fazia importância, ele não ligava para a minha aparência. E durante muitas noites nós nos amamos. Ele cobria-me de beijos. Nós deitávamos juntos todas as noites na esperança de que a nossa cria iria

        - "O feto. O feto é importantíssimo para a nossa música. Com os unguentos eu hidratarei a madeira e deixarei-a macia para o trabalho." -

        E assim nós ficamos até o dia da concepção, da dor, e do ser mal-formado caído prematuramente no chão sob as minhas pernas.

        - "Rápido! Rápido! Não podemos perder tempo. Pegue as panelas." -

        Durante todos os meses do meu aprendizado ele não deixava-me tocar num fio sequer do meu cabelo. Ele crescia desordenadamente. Nada mais de produtos, tintas, ou químicas.

        - "Ele vai ficar liso com o tempo, e com os fios negros nós faremos um arco que suportará todos os golpes do músico." -

        Nós prosseguíamos com os unguentos todos os dias, a lavagem da madeira, as dobras e os entalhes. Até a conclusão da nossa obra prima. Mas daí vocês chegaram.

        - "Minha querida, eis que aqui nós temos o nosso instrumento perfeito. O Violino feito com a música da sua alma e criado com a carne do seu corpo. Tu, que encarnou a música para dar vida a este som." -
        - "Toquemos à nos Senhor!" -

        Cães, as batidas na porta, sirenes.

        - "Polícia! Abra já essa porta ou arrombaremos!" -

        Algum vizinho reclamou do cheiro que vinha da casa. Diziam havia alguma coisa morta lá dentro. A polícia ao investigar o lixo encontrou os restos de carne que nós não utilizamos.
        Ao entrar Mikahil apanhou o bisturi e colocou-o no meu pescoço.

        - "Se vocês se mexerem eu mato ela!" -

        O tiro foi certeiro. Atingiu o ombro dele e não tocou em sequer um milímetro de mim.
        Nós fomos levados ao hospital, depois à delegacia. Haviam encontrado os experimentos errados e encontrado o violino perfeito que nunca fora tocado.

        - "Os nossos médicos acreditam que durante todo esse tempo de cárcere você desenvolveu sérios graus de Síndrome de Estocolmo. Por favor, aceite vê-los novamente, nós podemos te ajudar e podemos colocar esse monstro na cadeia. O que ele fez com você não é humano." -
        - "Eu só quero o meu violino." -
        - "Nós sabemos do que ele foi feito. Ele foi incinerado." -
        - "NÃO! NÃO! NÃO! AQUELE INSTRUMENTO ERA A MINHA VIDA! ERA A MINHA ALMA. TODA A MINHA MÚSICA ESTAVA NELE!" -
        - "Alguém me ajude a dar um jeito nela, por favor!." -
        - "Aquele instrumento era perfeito, ele carregava música interior que há dentro de mim! Por favor NÃO!!" -
        - " Doutor, venha aqui!"-
        - " Pronto, pronto, esse remedinho vai te acalmar." -
        - "Agora que nós temos tudo o que ela falou, ele vai preso de fato." -
        - " Capitão Alexander!" -
        - " O que foi, porque você está todo esbaforido assim?" -
        - " O luthier." -
        - " Que foi?" -
        - " Se enforcou dentro da cela. Ele tinha uma corda de violino no bolso, amarrou-a nas grades e suicidou-se." -



A música é feita de todos nós. É o eco da alma. É a dor, é a palavra, é a felicidade, todos os nossos sentimentos transformados em algo físico e palpável. 
A música está dentro de todos nós.









segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De todas as coisas que um dia eu quis dizer.

        Um texto tímido, que não é pra ter sentido, não é uma história, não é algo excepcional. É como se fosse apenas para colocar os pensamentos em ordem, e fazer tudo voltar ao normal, como você diz.



Eu queria um cigarro, companhia, ou alguma coisa pra beber.


        É como se ela me sugasse. Fizesse-me esvair-me toda a criatividade e deixasse apenas um monte de cinzas dentro do meu peito. Como quando eu tento escrever e sequer uma frase sai das minhas mãos. Esse é o texto paradoxal sobre não conseguir escrever. Pra escrever, eu preciso ler. Mas eu tenho uma dezena de livros-não-lidos na minha estante. Falta concentração. Falta papel e caneta. Faltam páginas. Falta eu.

        Justamente. Eu estou faltando dentro de mim mesmo. A minha alma foi sufocada por tudo o que aconteceu. E agora, a cada palavra que eu tento escrever eu tiro um punhado de terra de cima de mim mesmo. Vagarosamente a criatividade emerge da cova de cinzas e quebra a casca da lembrança que lhe impede de crescer. 
        Se fosse por falta de amor eu não sofreria. O problema é que há amor demais. Se houvesse orgulho, quem sofreria seria você. O problema é que tem mais amor do que orgulho.  Eu sei que eu posso fazer você sofrer, mas cada outro eu meu diz-me para não fazer isso. O amor está sobre todos os outros eus. O amor impede a vingança.
        Embora você nunca imaginasse, mas o Tyler também pode sofrer.
        E cada volta do disco é uma lembrança. Cada verso é um momento. Do gosto pungente da vodka gelada, do cheiro da pele, das tuas palavras. De todas as coisas que um dia eu quis te dizer.
        E de tantas coisas eu sei que eu posso perdoar,


mas nunca esquecer.





quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Lobos.


        Até hoje eu tenho pesadelos todas as noites com lobos.


        Não. A morte não vem à cavalo.
        A morte tem pelagem cinza. Tem olhos azuis. Tem dentes pontiagudos.
        A morte me persegue. Eu fujo. Eles são três.
        Eram três.
        A morte é a bala do meu fuzil. A morte é a lâmina da minha faca.
        Por mais que eu corra eu sei que eles vão me alcançar. Meus pulmões queimam. Meus músculos queimam. Eu corro por entre as árvores, elas passam pela minha visão como raios. Um deles vem pela direita. Outro por trás. 


        -"Porque é que você vai caçar essas horas da manhã, amor?"- 
        -"Tem um alce."-
        -"E?"- 
        -"Eu estou na pista dele fazem alguns dias. Ele tem rondado a floresta."- 
        Eu apanhei o rifle, as botas, o boné, as barras de cereal e saí. Quando eu já havia ultrapassado a balaustrada da varanda ela disse:
        -"E sua faca? E seus cigarros?"-
        -"É verdade. Bem lembrado."-
        Saí do casebre em que passávamos as férias. Caça para mim era um passatempo. Eu não mataria o alce para me alimentar. Era simplesmente a sensação de poder que eu tinha. Passava horas seguindo as pistas. E ao avistar a presa eu tinha todo o poder da vida ou da morte nas mãos. O dedo no gatilho era a linha tênue entre a vida e a morte do alce. Aquele alce estaria à minha mercê. Eu era o deus daquele animal. Eu tinha completamente o poder sobre a vida. Aquele alce era meu.


        O primeiro, eu derrubei com um tiro.


        O sol estava nascendo atrás das montanhas. O inverno acabara de terminar e todas as árvores estavam desfolhadas. As plantas baixas da tundra estavam apenas renascendo. Ainda havia um pouco de neve nos galhos das árvores. 
        Eu caminhei durante algumas horas. Seguindo as pegadas. Indo e vindo por pistas falsas. Caminhava tranquilamente com o rifle nas costas e um cigarro na mão. Apenas à espera da presa.


        Foi aí que eu o vi.


        Ele estava a uns 200 metros de distância e vindo na minha direção. Eu ajoelhei-me, fiz a mira, e esperei.        
        Ele, apenas com a sua vida de alce. Fazendo coisas de alce. Comendo comida de alce. Na minha mira. Quando ele aproximou-se mais, a pequena cruz da mira já estava completamente centralizada entre seus chifres. Eu cuspi o cigarro, tranquei a respiração, e atirei.
        Ele caiu. Após o estampido da arma ele caiu lentamente feito um tronco de árvore enquanto grunhia sofridamente.


        Foi aí que eu vi.


        Entre o lobo e eu, estava o alce. 
        Aquele alce era meu. Eu vinha seguindo-o a dias.
        O lobo ia alimentar-se daquele alce. Aquele lobo esperou semanas para a deixa certa para atacar o alce. Aquele alce era do lobo. 
        E ele me viu. Com os olhos vidrados em mim, ele rosnava com os dentes à mostra. Avançou primeiro em passos lentos, pata ante pata. Mas o ritmo foi aumentando. Ele corria. E saltou por cima do corpo do alce em minha direção.
        Eu tinha poucos segundos. Com os movimentos precisos do ferrolho, outrora muito bem treinados, eu engatilhei novamente o fuzil. E atirei.
        Novamente, mais uma lamúria suplicante pela vida. O tiro pegou-o em cheio no peito. Com o tiro ele parou de correr e caiu ao chão, ainda arrastando-se um pouco. O sangue manchava a pelagem cinza. A respiração saia em vapor de suas mandíbulas semi-abertas.


        Foi aí que eu os vi.


        Eu ouvi um latido. Desesperado eu virei-me. Ainda tinham mais dois deles, um pela esquerda, um pela direita. Eu estava cercado.. Estavam cercando-me o tempo todo. Não sei a quanto tempo eles me seguiam. A presa não era o alce.


        Eu era a presa.


        E eu corri. Eu sabia que eu tinha cerca de 800 metros até uma posição de tiro favorável. Eu subiria em um rochedo próximo. Recarregaria o fuzil, e atiraria. Recarregaria de novo e mataria o terceiro. Mas as coisas não eram fáceis assim. Esses 800 metros eram muito mais que 800 metros. Eu corria. Corria enquanto ouvia os latidos. Eu passava por entre as árvores e pulava as raízes. Eles estavam próximos. 
        Ao virar-me para olhar para trás eu vi a boca aberta avançando contra mim. O rugido animal de fome, de bestialidade declarava a minha morte. Ele pulou sobre mim, mas eu ainda pude acertá-lo com um golpe da parte traseira do rifle. O segundo lobo caiu. Eu sabia que não havia o matado. Ele caiu e ainda respirava, mas estava inerte, paralisado com o golpe direto na cabeça.
        Ainda havia mais um. E eu continuei correndo.


        E ele vinha feroz atrás de mim. A sua natureza de predador havia treinado-o para isso. Aquela era a vida do animal. A única coisa que ele fazia era caçar.
        Ao alcançar o rochedo, o lobo também me alcançou. Enquanto eu subia nas rochas, ele pulou e mordeu a parte traseira da minha coxa.  Como um choque elétrico no meu corpo, a dor tomou conta. Todo o meu corpo amoleceu-se. Eu escorreguei, perdi as forças, e deslizei descida abaixo. Enquanto eu rolava pela encosta, o lobo vinha junto. 
        Ao chegar novamente ao pé do morro eu vi que meu rifle havia rolado para longe e o lobo estava novamente aproximando-se de mim. A minha perda doía. O sangue empapava as minhas calças, e pelas rochas que eu rolei havia um rastro de sangue.
        O lobo vinha lentamente na minha direção. Olhando-me. Precipitando cada reação.


        Eu ainda tinha a minha faca.


        E ele avançou sobre mim feito o seu parceiro inconsciente. Assumiu uma posição de ataque, que só este tipo de animais faz. Olhava fixamente para mim. Esticou as patas dianteiras, preparou o pulo, com um movimento levou o corpo para trás. 


        E pulou.


        Mas eu já havia apanhado a faca.


        E o lobo pulou diretamente sobre mim. Diretamente sobre o meu corpo. Diretamente sobre a faca. O sangue quente jorrou do peito do lobo e inundou as minhas vestes. Ele caiu sobre mim. A pelagem espessa estava inundada de sangue. O corpo pesado do animal estava sobre meu peito. Eu tive dificuldade de tirá-lo de cima de mim.


        Com a perna ferida, eu demorei um bom tempo para subir o rochedo. O rochedo era na encosta de um rio. Lá de cima, eu poderia gritar por socorro e esperar alguém. Lá de cima me veriam. Eu não tinha condições de andar até em casa.
        Lá de cima do rochedo eu pude ver o panorama. O lobo morto no chão com a faca cravada no peito. O rio que passava pelas minhas costas, feroz como a fúria dos lobos. O degelo das montanhas aumentara muito a força da correnteza. Pude ver o alce, escondido entre as folhagens baixas. Pude ver o primeiro lobo, ao lado do alce.


        Onde estava segundo lobo?
        Eu procurei desesperado o lobo desmaiado até onde meu olhar podia alcançar. 

        Ele estava mais perto do que eu pensava. Ele subia o morro atrás de mim. Uma coronhada apenas não fora suficiente para derrubá-lo. 
        Eu me aproximava da beirada do rochedo. Eu estava cercado. Meu rifle estava lá embaixo, minha faca também. Eu não tinha mais o que fazer. E a minha perna queimava de dor, mesmo que eu tivesse algum lugar para correr, eu não conseguiria.
       
        Ao chegar no topo o lobo parou. Sua respiração criava vapor no frio. Seus olhos de puro ódio encaravam-me. Eu podia sentir o cheiro da pele do lobo. Eu podia sentir a ferocidade que corria pela suas veias. Ele sentia o medo em mim.
        Eu não sei como aconteceu. Talvez eu estivesse muito perto da borda do rochedo quando ele pulou sobre mim e me fez cair. Talvez eu pisei em falso enquanto olhava para trás. Talvez eu tenha pulado na água por não ter para onde correr. A queda era alta. Eu bati a cabeça em alguma rocha quando caí.

        -"Julien! Julien! Cadê você? Você pode me ouvir? Onde é que você está?"- 
        Eu ouvia apitos, via feixes de lanterna. Ouvia gritos do meu nome.
        Talvez eu tenha acordado por causa da dor, talvez com os gritos dos que me procuravam. Meu sangue diluia-se na água. Eu estava deitado na beirada de uma parte calma do rio quando acordei. A perna doía muito, se eu demorasse a tratar a mordida aquele membro seria um membro morto.

        Quantas horas eu fiquei ali?

        O vento frio gelava todo o meu corpo, o que acentuava a dor. O crepúsculo da manhã começava a aparecer no horizonte. O sol magenta coloria toda a tundra.

        Quando me encontraram, eu perguntei: 
        -"E o alce?"-
        -"Que alce?"-
        -"Eu matei um alce."- 
        -"Você está machucado, agente precisa te levar para um hospital."- 
        -"Eu cacei aquele alce, se ninguém cuidar da carne logo logo ela vai apodrecer."- 
        -"Deixa que os lobos da floresta o comam."- 
        -"Aquela presa era minha."- 







sábado, 26 de novembro de 2011

Amor e Ultraviolência.

        E eu quis destruir tudo aquilo que era belo. Esmigalhar toda a beleza que eu encontrava pelo meu caminho. Das flores eu fiz uma mancha vermelha na parede branca quando elas foram arremessadas com vaso e tudo. A supernova de cacos e água que espalhou-se no ar e como que por um segundo fora capaz de condensar toda a luz refletida em um espectro flutuante de brilho. O som tilintante dos cacos caindo no assoalho de madeira mitigou-se no som da minha voz;

        - VAGABUNDA! - 

        Inércia: Tendência de um corpo permanecer em um estado de movimento constante.

        Ela me olhava. E eu via medo em seus olhos. As lágrimas eram como os cacos de vidro no chão, o brilho perdido que nunca mais voltaria ao seu estado original. As faces vermelhas tinham o mesmo carmesim dos lábios. E o choro. O choro. Aquilo me doía. Como se cada lamúria fosse a nota de um violino, os arpejos  tocavam fundo nas cordas do meu coração, e me doíam.

        A velocidade do som no ar é de 340m/s

        Mas eu não conseguia parar.
        Eu queria destruir tudo aquilo que era belo. Enquanto não visse o último vaso despedaçado, a última fotografia rasgada, os móveis ainda de pé, meu corpo não iria descansar. 

        - Parece que eu não te conheço mais. - E lá ía-se um vaso de porcelana à parede.
        - Você mudou tanto. - A cômoda virada, as gavetas no chão. As roupas espalhadas.
        - Você vai ficar aí, chorando? - Estas fotos foram do nosso casamento. Agora estão sendo levadas pelas lufadas de vento da janela.
        - Você é fraca. - Defenestrar. É essa a palavra.

        A aceleração da gravidade na Terra é de 9,8m/s²

        Não que eu quisesse parar. Não que eu fosse parar enquanto não tivesse terminado. Mas isso era um pesadelo.
        Isso era um pesadelo?
        E por um segundo eu fechei os olhos, esperando que quando eu os abrisse novamente o dia seria outro. Eu não teria chego em casa. Não teria encontrado mais ninguém no apartamento. Não, não seria só um amigo. As roupas no chão não seriam dela. Aquele amigo não seria gay. Aquela calcinha não era sua. Os preservativos nunca foram usados.

        - Que porra de música é essa? - 
        - De onde vem? - 
        - Porra, porque você não me responde? - 

        Tenacidade: A energia mecânica necessária para levar um material à ruptura.

        O rádio estava ligado. Mas nenhuma estação sintonizada. O som fantasmagórico misturava-se com as lágrimas acuadas encolhidas no sofá. Um soco e elas parariam. 

        No primeiro, uma música começou a tocar.
        No primeiro, o sangue já começou a fluir. 

        Aquela música fora a música do nosso casamento. A fita já deve estar espalhada em pedaços pelo chão. O piano tocava a sua cadência, ela abraçada ao pai acompanhava o ritmo nas passadas. Tudo perfeitamente coordenado. O tapete vermelho, o vestido branco. E todas as coisas que foram construídas na nossa vida.
        O sangue espirrou em uma cascata pelo nariz. Aquele rosto tão belo que outrora eu tanto beijara, agora trazia as marcas das minhas mãos, o nariz torto no primeiro golpe. O rosto branco pintado de vermelho. E todas as horas que eu passara olhando para aquela face.

        Um soco não fora o bastante. 
        Dez anos não foram o bastante.

        O pescoço humano só aguenta ser virado até certo ângulo, depois disso, o cérebro apaga.

        No segundo, o rádio despedaçou-se. Mas eu não parei de ouvir a música. Na minha vida, eu nunca tivera deixado de ouvi-la. Juntos nós a ouvimos tantas vezes. Nas viagens, nas noites partilhando a cama, nas tardes cozinhando. Ela era uma companhia constante na minha vida, ela, e a música. 
        No segundo, ela desmaiou. Ela sempre fora de constituição frágil. E lá jazia inerte nas minhas mãos inundadas de sangue. A boneca de cabelos pretos parecia ser preenchida com pano, molenga, suscetível à quaisquer mudanças que eu pudesse causá-la. 

        Eu tenho que dar um fim nisso. Toda lembrança estava sendo levada com as fotos pelo vento. Toda vida esvaindo-se na minha mão. Até hoje, alguns ousam falar que o que eu fiz não fora por amor. Mas se não fosse por amor seria pelo que?


        Não há justificativas.

        Ela me traiu.

        Se você a amasse nunca teria encostado um dedo sequer nela.

        Na nossa cama. Na minha casa.

        Você destruiu tudo o que você tinha. Destruiu sua casa, seus móveis, sua esposa, sua vida.

        Quisera eu não ter tido aquele final.

        Quem causou ele foi você.

        Eu sempre a amei.

        Isso não é amor.


        No terceiro eu já nem pensava mais, era meu corpo quem agia por mim e meu cérebro atônito apenas assistia tudo o que eu fazia. No quarto eu ouvi barulho de ossos quebrando. No quinto, eu senti as lágrimas e o remorso vindo peito afora. No sexto eu sabia que precisava dar um fim naquilo.

        O mandamento condena o assasínio. A ira é um dos sete pecados. 

        Não há deus que vá me salvar. A banheira ainda está cheia de água. E enquanto eu a arrasto, o sangue forma um rastro no carpete. Eu jogo-a lá dentro, fecho os olhos e deito no chão gelado do banheiro.

        A respiração é controlada pelo sistema nervoso autônomo. Depois de por volta de dois sem respirar o corpo tende a instintivamente buscar qualquer forma de respirar.

        A água colorida pelo sangue espalhou-se no ar enquanto ela levantada ofegante. Como um sonho eu ouvia os sons, via as imagens mas simplesmente não tinha força para mover-me. Meus músculos doíam exaustos. Minha alma já não queria mais lutar. O som da barra de pendurar toalhas que fora arrancada da parede sendo levantado do chão reverberou nas paredes de azulejo. Ela apanhou a barra, e debilmente dirigiu-se à mim. Estava coberta de sangue. O vermelho diluído na água.
        Ela ainda tinha forças.
        O primeiro golpe fora o suficiente para causar-me dor.
        No segundo, meus ossos do crânio quebraram-se.
        O terceiro, o quarto, e o quinto, foram seguidos. O sangue espirrou na porcelana branca criando pequenos pontos espalhados na imensidão da alvura asséptica.
        No sexto, eu já não respirava mais.

        Batidas na porta. Chutes. A polícia entra gritando e um dos vizinhos diz:
        - Nós ouvimos o que aconteceu. -
        Olham para mim e perguntam:
        - Você está bem? -
       Vacilantes dizem:
       - Ele está. . . morto?   

sábado, 12 de novembro de 2011

Sufoco.

Tente respirar. E você vai ver que o ar do lugar não é suficiente.
Bata nas paredes e ouça o som metálico da sua voz caindo pelo fosso.
Veja a imagem desfocada dos seus olhos vermelhos no espelho.

De manhã, você fez a barba, escovou os dentes, e veio.

Você está preso entre o décimo, e o décimo primeiro andar.

Se não fosse tão baixo, você tentaria abrir as portas. Você sabe que se você forçar, e tentar sair pelo vão, o elevador pode descer e você vai ser cortado pelo meio. Feito aqueles filmes de terror.

Tente gritar. E você vai descobrir que não há mais ninguém no prédio.
O aço escovado reflete todo o seu desespero. E você está enclausurado na cápsula metálica.
Você liga o celular e lembra daquela aula do ensino médio: "elevadores criam uma blindagem eletrostática."
Você lembra disso, mas não lembra da merda do aniversário da sua mãe.
Se essas aulas tivessem servido para algo você não estaria aqui, agora.

Tudo o que você fez durante toda a sua vida encaminhou você para esse momento.

Continue batendo nas paredes, amasse o metal. Machuque os nós dos dedos. Pinte o prateado de vermelho.
Você não vai à lugar algum.
Cinco segundos, e você teria ido pelo elevador de serviço.
Tudo o que você fez, te trouxe pra cá.

Chore. Esbraveje. Aproveite para derramar suas lágrimas enquanto ninguém vem buscar você. Você está sozinho.
Você sempre esteve sozinho.
Você não tem mulher, não tem filhos. Ela te largou.
"Eu vou fazer um aborto, quem sabe eu vá morar com a minha mãe. Eu só não quero te ver mais."
Quem sabe se as aulas do ensino médio não tivessem te levado pra outro lugar e ela também não estaria lá.

Viva para esse seu emprego de merda. Seu apartamento alugado. Volte de metrô para casa.
"Eu sou o lixo orgânico da sociedade."
Largue esse livro. Ele não vai fazer o tempo passar mais rápido. Quem sabe o tempo nunca mais passe pra você. E você fique preso nessa caixa de metal.
Quem sabe o zelador encontre seu corpo sufocado pela manhã.
"Olha senhor policial, ele sempre é o último a sair. Eu acho que ele ficou preso no elevador. Entrou em pânico e se 'engasgou' com a gravata."

Tente gritar mais uma vez. E ouça o eco dos anos perdidos.
Quem sabe, se você tivesse passado naquela faculdade, você não estaria aqui.
Você pensa na sua vida. Pensa na comida na geladeira. Você sabe que ninguém vai tirar ela de lá. Pense nas baratas. Nos ratos nos armários. Pense nos seus medos.
Você pegou uma canetinha da pasta, e está desenhando nas paredes. Você queria faculdade de arte, não queria? Seus pais não colocavam fé no seu futuro.
E você acabou sem futuro. Em um emprego de escritório, que paga mal, e te humilha.

Acenda um cigarro.
Você não tem muito mais tempo de vida. Pra que se importar?
Nunca nem você mesmo se importou.
Nunca ninguém se importou.
Você durante toda a sua vida nunca foi cobrado. Só tinha que fazer a sua obrigação, nada mais.
Você não tem méritos. Você nunca foi o primeiro a ser escolhido na educação física. Nunca foi o mais esperto da faculdade. Nem tinha a namorada mais bonita, ou o carro do ano. Nunca teve o melhor lugar para morar.
Todos nós fomos criados para sermos melhores, criados para nos acharmos únicos em alguma coisa.
"Você é o lixo orgânico da sociedade."

As cinzas grudam no suor do seu peito. A camisa está aberta, o cigarro pende frouxo na boca.
Você relaxa. Adormece. Espera que aquilo passe logo.
Afinal, você vai ser achado de manhã. Jeito ou outro, mas vai.

Sinta a brasa arder no seu peito. Sinta o cheiro do poliéster queimando.
Sua camisa está pegando fogo. Você a tira rapidamente e a joga no chão.
Você se queimou um pouco. O peito e os braços estão ardendo.
O elevador está tomado pela fumaça cinza. E o ar se torna ainda mais difícil de respirar.

Você acorda, e se lembra onde está. Vê a camisa consumida pelas chamas no chão. Seus braços ardem.
Você encosta-os na parede de metal.
Isso é sangue nas minhas mãos?
O alumínio gelado alivia a dor, mas não cura.
Toda sua vida foi assim. Alivia, mas não cura. A dor acumulou-se nos seus poros durante os anos, algumas noites bem dormidas aliviavam as brigas com a ex-esposa. Ganhe seu salário no final do mês, e ele aliviará a culpa da faculdade desperdiçada. Veja a vida de um filho escorrer pelas mãos, foque apenas no trabalho, ocupe a sua mente com outras coisas. Ela foi embora, agora você tem o apartamento só para você.

Alivia, mas não cura.

Chorar não vai fazer a dor passar. Não vai fazer você esquecer as lembranças. Você não tem ninguém para te ouvir. Você está sozinho. Na vida. No prédio.

Você acordou, e achou que ia ter um dia bom. Comprou um vinho para tomar de noite, uma massa para o jantar. Eles ficaram no carro.
Será que alguém vai se lembrar de retirá-los?
Baratas. Vinagre.

Você pensa a quanto tempo está lá. Tem certeza de que já se passaram mais de horas.
Você tenta forçar as portas. E se depara com quarenta centímetros de laje bem na altura do seu peito. Você não vai conseguir forçar a porta de cima, ela está muito alta. Tampouco a de baixo, se o os freios do elevador escorregarem, você morre.
Pelo menos a porta aberta cria uma ventilação melhor.
O cheiro de queimado continua insuportável.

Alivia, mas não cura.

Foque no trabalho. Apanhe os papéis da pasta e leia-os. Suas mãos estão sujas de fuligem e mancham os papéis.
Você tem que entregar este relatório amanhã para o seu chefe.
O tempo não vai passar.

Chute as paredes. Você está com raiva. Veja o metal se curvando sob a sua força.
Ouça o eco das batidas vindas pelo fosso.
Você é esse eco. Tudo o que você viveu até agora, serviu para te fazer terminar nesse último segundo de som.
Você está resignado. Acostumou-se com a sua vida-de-inércia. Você só tem o que tem, porque é assim que as coisas são. Você nunca quis mais, nunca quis melhorar. Você nunca esteve acima da média. Você é o eco de todas as suas decisões anteriores.

Isso tem que acabar. O elevador. A sua vida.
Você calmamente empurra para cima a cobertura de plástico do elevado, amarra a gravata na armação de aço. Apoiado nas laterais, você se ergue, e a passa pelo pescoço.
Tudo o que você fez, te levou até aqui.
A queda não é suficientemente alta para quebrar o seu pescoço.
O ar ainda tem cheiro de queimado. Está difícil você respirar por aqui.
Uma pessoa normal leva de cinco a quinze minutos para morrer asfixiada.

E você lembra das aulas. Lembra do passado. Lembra de tudo aquilo que você tem vergonha. Lembra do filho que você não teve. Lembra da esposa que lhe deixou.
Você tem dor. Você se debate pendurado. Seus chutes batem no espelho, que se quebra em milhares de cacos coloridos.
Você tenta tirar a gravata do seu pescoço, sente suas próprias unhas lacerando a sua carne. Sente as veias dilatadas no pescoço sangrando.

A gravata se rasga, e você cai no chão. O boneco inerte cai sob os cacos de vidro e se rasga inteiro. O sangue se mistura com os cacos de espelho. As pupilas frias refletem no mar de vidro pintado de vermelho.
Agora já é tarde demais.

Você sabe que ninguém vai buscar você. A comida vai ficar esquecida na geladeira.
Ninguém vai no seu velório. 
Todas as suas memórias, todo o seu passado, se esvaindo no último suspiro de vida.
Se a gravata tivesse rasgado cinco segundos antes, você teria sobrevivido.
Tudo o que você fez, te levou até aqui.
De manhã vão achar você. De um jeito ou de outro.

"Olha senhor policial, ele sempre é o último a sair. Eu acho que ele ficou preso no elevador. Entrou em pânico e se 'engasgou' com a gravata."
"Mas não tem botão de emergência nesse elevador?"
"Tem. Mas ele não viu. Por isso que ele deve ter entrado em pânico."

Você nunca foi acima da média.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Notcturnes Opus 9

        "Te cobri de beijos, escorreguei por toda tua pele com meus lábios, até terminar na tua vergonha com meus carinhos."       
Quisera eu escrever uma sinfonia para você.
        "Te entreguei nas mãos todos os meus escudos. Joguei pro alto toda a minha arrogância."
Pra mim, a música é a mais bela expressão dos sentimentos humanos.
        "Sorri quando lembrei das suas rimas."
Alguns acordes, alguns arpejos, e uma melodia. Que arrepiam e tiram o ar.
        "Teus lábios me sugavam qualquer respiração, tuas mãos desencadeavam uma tempestade elétrica de arrepios na minha pele."
E pra compensar meus dotes musicais, eu fiz a minha sintonia de palavras.
        "Assoviei uma canção baixinho até você adormecer nos meus braços. Quente, calma, tão frágil."
Na página pautada, eu manchei os versos com tinta escarlate. Na tua pele branca, eu borrei o teu batom vermelho.
        "Teu abraço que me parece carrossel, me leva pra brincar, me faz perder toda a compostura e no fim, eu apenas sorrio."
Nas partitura, eu escrevi alguns versos. Compasso-ternário. Estrofes-de-ternura.
        "Não há nada a fazer, senão me entregar. Senão me perder no emaranhado de cabelos-pretos-enrolados."
A melodia, no fim, só queria dizer: Eu te amo.
        "Não há nada a fazer, senão cantarolar Chopin até enquanto você dorme nos meus braços."
A minha sinfonia, os meus versos, meus parágrafos, são todos para você. 


Pra você, minha maestrina.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Clube da luta? - Parte III

Continuação de "Vai lá falar de amor", da série isso não é amor.
Parte três: Jack.

Eu sou as lágrimas secas de Jack.


         "Alô, James?"
         "Alô, V?"
         "Era você me ligando todo esse tempo?"
         "Era. Por que você não me atendeu?"
         "Eu não queria falar com você."
         "E por que não?"
         "Porque eu estava chorando."
         "Como assim chorando? Por quê?"
         
Eu sou a voz trêmula de Jack.


         "Por causa de você."
         "Eu fiz alguma coisa?"
         "Fez."


Eu sou o arrependimento de Jack.


         "Quem tinha que estar chorando aqui sou eu."
         "Por que você falou aquilo?"
         "Aquilo o que?"
         "Falar que me ama."


Eu sou as memórias amargas de Jack.


         "Se não fosse verdade, eu não teria falado."
         "Isso me fez chorar."
         "Por que você desligou o telefone?"
         "Porque eu tenho medo."


Eu sou as mentiras de Jack.


         "Medo de que?"
         "De sofrer."
         "Eu não quero te fazer sofrer, pelo contrário. Eu quero te fazer feliz."
         "Eu sei que se eu colocar minhas expectativas, eu vou tomar no cu. Já aconteceram tantas vezes."
         "Essa vez não vai ser igual às tantas outras. Comigo vai ser diferente."


Eu sou as promessas de Jack.


         "Você está muito ocupado agora?"
         "Não."
         "Então passa aqui. Eu quero conversar com você, e ainda tenho os seus cigarros."
         "Quer que eu leve alguma coisa?"
         "Um livro. Mais cigarros e alguma coisa pra beber."
         
Eu sou a esperança de Jack.
         
          "Eu estou chegando aí."
          "Anota meu endereço. . . "

Continua

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Clube da luta? - Parte II


Continuação de "Vai lá falar de amor", da série isso não é amor.



Parte II: Tyler.

         Chore.
         Chore até não poder mais chorar.
         Você me conheceu em uma época estranha da minha vida.
         Quando eu me escondi sob essa máscara cáustica de arrogância, eu achei que era invencível. 

         Chore.
         Chore até seus olhos doerem.
         Mas as lágrimas salgadas derreteram toda a proteção que eu podia ter. Me tornaram uma garota fraca, humilde. 
         De tanto apanhar da vida. De tanto sofrer com os outros, eu achei que o amor nunca seria real pra mim. Outrora eu já havia colocado tantas vezes todas as minhas fichas na esperança no amor de algum cara, e tudo ia água abaixo.
         Aí eu cansei dessa história de amor. 
         
         Chore.
         Chore até faltar o ar.
         Eu maltratei os outros, eu cheguei à uma fase em que eu simplesmente não me importava com o que eu fazia com os outros. De tanto estar cansada de tomar na cara, eu comecei a revidar. Me tornei o pesadelo na vida de muitos caras.

         Chore.
         Chore até não ter mais voz.
         Eu cheguei no fundo do poço.
         Era auto-destruição pura.
         Eu tenho um livro que diz:
A filosofia de vida da Marla é que ela pode morrer à qualquer momento. A tragédia, ela diz, é que isso não aconteceu ainda.
          Durante muito tempo, essa foi a minha filosofia.


         Chore.
         Chore e esconda suas lágrimas na água do chuveiro.
         Só que daí, você me ligou.
         E me disse uma coisa que nunca ninguém tivera me dito:
V, eu amo você.
         Foi aí que eu descobri que eu podia chorar.
         Mas ainda assim, eu precisava máscara cáustica sobre o meu rosto.
         E feito o beijo, eu fugi.
         
         Chore.
         Chore enquanto ouve o telefone tocar.
         Eu sei que você está me ligando.
         Eu não vou atender.
         
         Chore.
         Chore enquanto fala no telefone.
         "Alô, James?"


Continua.

Clube da luta? - I

Continuação de "Vai lá falar de amor", da série isso não é amor. 


Pate I: Marla.

         Eu tinha um livro que dizia mais ou menos assim:
Marla, fumando um cigarro, olhando para os lados.
Mentirosa.Cabelos negros e lábios franceses carnudos. Lábios de sofá italiano de couro preto. Você não me escapa.
         No livro, a história toda começou quando o narrador conhece Marla. 
         Não que eu seja um terrorista psicótico anarquista. Mas a minha história começou quando eu conheci você.
         Não foi bem quando eu conheci você. 
         Foi quando você desligou o telefone depois de me dizer:
 Eu não sou a Cinderela, idiota.
         Antes de você fugir de mim, antes de eu me perder no meio da canção, a batida ainda continuava a tocar.  
         Eu sei que você se pergunta "Por que esse idiota achou que podia me beijar sem mais nem menos?" - Se você me perguntasse isso eu te responderia: "É porque eu me apaixonei por você, assim, sem mais nem menos." 
         E você pouco se importa com paixão, com amor.
         Foi súbito. Eu vi você naquela festa, fui apresentado à você, e simplesmente não sabia o que dizer.
         Eu não sabia seu nome.
         Não sabia o que dizer.
         Fiz o que qualquer canalha poderia fazer: Te chamei pra dançar.
         Aquele papo da claustrofobia de multidões era só charme, eu precisava de algum motivo pra chegar perto de você. Dançar de olhos fechados era uma boa desculpa.
         E a música dizia:
         Stop making the eyes at me, i'll stop making the eyes at you.
         Só que eu só conseguia ficar de olhos fechados.
         E você, feito a personagem do livro, com seus cigarros.
         Porque foi que eu, no dia seguinte resolvi dizer que eu te amo?
         Fora o misto de desejo, afobação e êxtase.
         Eu sei que não ia adiantar. 
         E agora eu não sei o que fazer.
         Você simplesmente fugiu.
         des-a-pa-re-ceu. E não atende mais o telefone.

         "Eu vou ligar mais uma vez para você."


Continua.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Vai lá falar de amor.

Continuação de "Da sacada eu vi,", da série isso não é amor.






Toque.


Silêncio.


Toque.


Silêncio.


Toque.


Silêncio.


"Ela não vai atender."


Toq. . .Clique.


"Alô."
"Alô, V?"
"Quem é?"
"Sou eu, o Jim."
"Como foi que você conseguiu meu telefone?"


Logo antes:

"Alô?"
"Alô, Chris?"
"Oi, Jim."
"Aquela sua amiga, a da festa. . . "
"A V?"
"Sim."
"O que que tem?"
"Qual é o nome dela?"
"Ela não te contou?"
"Não."
"Então não vai ser eu quem vai contar. HAHAHA"
"Me dá o telefone dela?"
"Ela não te deu o telefone dela?"
"Não."
"Então não vai ser eu quem vai dar."
"Ela ficou com algumas coisas minhas."
"Tá, anota aí. . . "


Agora:

"Foi a Chris quem me passou."
"O que você quer?"
"Você ficou com a minha lata de cigarros?"
"Fiquei."
"Onde você mora? Posso ir aí pegar?"


Outra hora, na festa:

"Eu estou cansada de dançar."
"Quer alguma coisa pra beber?"
"Quero ir embora, já está amanhecendo."
"Eu vou lá pegar uma cerveja pra nós."
"Tem cigarro aí?"
"Tenho."
"Me dá, eu vou lá fora fumar. . . "


Agora:

"E por que você acha que eu vou te devolver?"
"Eu não queria os cigarros."
"Tá me ligando por que então?"
"Porque eu quero saber teu nome."
"Victória, tá? Pronto, satisfeito?"
"Não."
"O que foi então?"
"Eu te amo."
"Que porra é essa?"
"É, desde a festa. Eu não consigo parar de pensar em você."
"E você acha que isso é amor?"
"É muito mais que isso."
"Isso não é amor."
"Eu te amo, Victória."
"Foi só um beijo. Eu não sou a Cinderela, idiota."


Clique.


Silêncio.


Toque.Toque.Toque.Toque. . . 

Claustrofobia, meu amor.

Escrito e portanto para ser lido ao som de "C'était salement romantique" da Coeur de Pirate

        Sabe, eu sou claustrofóbico. Claus-tro-fó-bi-co. Palavra bonita, não? Enfim, é isso mesmo. No sentindo mais clínico e neurótico da palavra. Nada de lugares pequenos e mal arejados, teto baixo, ar saturado, muita gente. Que lá vem a suadeira, o pânico, as palpitações.

        Mas não é bem sobre isso que eu vou falar.

        O fato é, é que meu amor é claustrofóbico também.

        Quando eu sinto, ele quer sair. Não consigo trancafia-lo dentro de mim por muito tempo. Talvez porque quando ele venha, ela venha gigantesco e simplesmente não caiba dentro de mim. E me enche feito um balão, toma cada espaço vazio, cada parte livre que eu tenho. E toma conta, completamente. E ele precisa sair. Eu preciso falar, preciso escrever. Eu quis te escrever uma música, ou então te pintar um quadro, feitos das coisas de amor. Só que eu não consigo, meu dom não é esse. E então meu amor resolve escapar pelas palavras, busca o espaço que já fora inundado dentro de mim nas folhas em branco.

E então eu pinto a minha sinfonia com a prosa.

        A “claustrofobia-do-meu-amor” é bem parecida com a minha claustrofobia. Quando esta começa, eu preciso imediatamente sair do lugar, buscar ar fresco, arejar os pulmões. E quando o amor começa, ele simplesmente não aguenta ficar muito tempo quietinho na dele. Quer sair, quer gritar. E pra sair, ele se joga nas minhas palavras que são levadas pelo vento.

        E por mais que pareça banal, eu gosto de dizer tantas vezes que “eu te amo”. Cada vez que eu digo, é um pedacinho que há dentro de mim que eu entrego pra você.

        E então, eu te entrego as minha canções, os meus desenhos e as minhas palavras. Todo o meu amor expresso em arte. Só pra fazê-lo libertar-se do claustro que é a minha carne. Te dou um pedaço da minha alma à cada texto.

        E sabe por que?

        Porque eu te amo.

sábado, 15 de outubro de 2011

Da sacada eu vi,

Continuação de "Minha vida em terceira pessoa.", da série isso não é amor.

        Eu vi as estrelas sumirem no no crepúsculo vespertino. O céu avermelhado engolia as luzes que vinham do infinito. Vi teu cigarro apagando-se aos poucos esquecido no beiral da sacada, o mármore manchado de marrom. 
        E tu só me encarava, com teus olhos de piano, o branco do olho intercalado com o verde da íris, com o negro da pupila. Talvez fosse pelo contraste que eu ficava hipnotizado, branco-verde-preto, tudo muito bem delineado com um contorno tão escuro quanto as pupilas. Ah, essa não-mistura de cor! Contornos que nunca se misturavam, só contrastavam entre si harmoniosamente. Era a ironia estampada nos teus olhos, a inconsistência da harmonia de cores intrínseca ao contraste. Eu podia simplesmente deixar toda aquela luz que refletia dos círculos-concêntricos-de-cor, tudo tão perfeito, tão colorido, tão hipnotizante. 
        Como que eu pude passar a noite toda de olhos fechados?
        O cigarro manchado de batom já fora levado pelo vento, e você nem se importou com as cinzas que manchavam o teu vestido. 
        "Nossa, teu topete está uma bagunça. Vem aqui, deixa eu arrumar." - Você me disse, chegando mais perto de mim. Passando a mão nos meus cabelos. E eu sei, que embora eu tivesse a noite toda colado à ti, cada toque teu ainda era eletrizante, um medo subia-me à barriga na menor iminência de contato.
        E você colocou as duas mãos no meu rosto, segurava-me como quem segura um bebê.
        "Pronto, agora você tá bonito." - E sorriu. O sorriso sincero destacava-se no rosto cansado. 
        E eu segurei tuas mãos juntas do meu rosto. Enlacei meus dedos nos teus e pressionei-os contra minha face. E tu só me olhava sorrindo. Eu vi a pele morena dos teus braços, o tom suave de madeira clara. E o pensamento "Pele-de-indiano" passou-me pela cabeça. Pele que tinha cor de especiarias. Marrom-vermelho-bordô-amarelo. Tinha cheiro de especiarias. O cheiro do desconhecido, cheiro mordaz de curiosidade, do inexplorado, tão pungente quanto o tempero mais ardido de todas as índias.
        Isso despertou as garras do animal mais feroz que há dentro de mim. O desejo vil de simplesmente te possuir. De passar meus braços envolta do teu corpo. Fazer-nos unir em um véu feito dos nossos beijos.
        Nossos olhos travavam um duelo. Nem eu, nem você, nos atrevíamos à desviar o olhar. Eu ainda segurava as tuas mãos.
        E outrora, nós passamos a noite juntos. Trocamos poucas palavras. Preferíamos falar em movimentos. Os corpos unidos, a tua pele suada encostava na minha. E eu, de olhos fechados. Nos poucos momentos em que eu estava perdido na inércia da música, eu abria os olhos. Na melancolia enredada nas guitarras de Radiohead que ecoavam de forma ensurdecedora através do salão do bar, eu vi os movimentos em preto e branco de todos lá dentro. A luz que piscava freneticamente criava uma descontinuidade nos movimentos, um segundo a pessoa movia-se parar uma direção, noutro a escuridão tomava conta do lugar, e no momento seguinte de claridade, na pequena fração visível a pessoa já saíra da trajetória prevista. Eu vi olhos cansados. Vi sorrisos. Vi peles brilhantes. Ouvi vozes, ouvi gritos. E naquele lugar onde todas os sentidos pareciam misturar-se nós não precisávamos falar nada, dizíamos coisas com os movimentos da nossa dança. Os corpos embalados pela batida frenética da música, tocavam-se, afastavam-se, abraçavam-se. Em um ritual primitivo de humanidade, que só nos fazia nossas próprias almas saírem de dentro de nós. Os olhos eram traídos pelas luzes, a música ensurdecia os ouvidos, e eu esbarrava em pessoas que eu sequer sabia quem era. Mas aquilo era fantástico. Eu me entreguei. E durante aquele frenesi, nós fomos um só. Dois seres unidos pela música.
        De volta à sacada, a imponência do teu olhar simplesmente desafiava-me. Tu sorria. Eu me perdia nas linhas dos teus olhos.
        Eu me aproximei do teu sorriso. Não tinha mais nada a fazer senão isto. Senão simplesmente te beijar. E concretizar a união que construiu-se durante toda a noite.
        Eu senti teus lábios com gosto de caramelo. Abracei tua cintura e te trouxe pra mim.
        Eu não ouvi sinos. E não vi estrelas.
        Eu só vi teus olhos vidrados nos meus.
        Teu batom vermelho manchado.
        "Que porra é essa?"
        E tu partiu. Simplesmente assim. Sem dizer teu nome, foi embora com os saltos vermelhos e a saia de pregas. Levou teus olhos e o meu coração.
        E eu ainda vou atrás de ti. V.